Jobs

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Na minha vida eu tento seguir algumas regras. São coisas simples, que basicamente servem para eu manter minha existência com um mínimo de dignidade. Duas dessas regras envolvem evitar Ashton Kutcher e cinebiografias como o Cascão evita a água.

Verdade, em nome dos delfonautas, eu constantemente violo essas regras muitas e muitas vezes. Para você ver a importância que a sua diversão tem na minha vida, eu hoje ignorei ambas as regras de uma vez. É, eu sou macho bagarai mesmo! This is Sparta e tal.

Sabe qual é o lado bom de escrever esta resenha, no entanto? É que eu não vou precisar perder tempo com a sinopse. Quer ver? Jobs é a cinebiografia do Steve Jobs e é estrelada pelo Ashton Kutcher. Puxa, é tão simples e ao mesmo tempo tem todas as informações necessárias. Por que a vida de um crítico de cinema não pode ser sempre fácil assim? Foi tão rápido que vou até repetir a sinopse para encher linguiça. Jobs é a cinebiografia do Steve Jobs e é estrelada pelo Ashton Kutcher. Pronto. Agora vamos à resenha.

EMPREGOS – O FILME

Sabe o que é o mais impressionante? Eu gostei de Jobs, que você pode considerar uma continuação não oficial de Piratas do Vale do Silício. Ok, não é assim um “nossa, mas como este filme é bom”, mas é bom o suficiente. Especialmente se considerarmos que é não apenas uma cinebiografia deveras oportunista, anunciada poucas horas depois de Steve Jobs bater as botas, mas ainda escalaram o pior ator da história para o papel principal. Só faltava mesmo o interesse romântico ser a Sarah Jessica Parker para completar.

Muito disso se deve ao tema. Por mais que eu goste de música, e você sabe que eu amo música, filmes como Johnny & June acabam caindo na mesmice e nas armadilhas da cinebiografia como gênero. Por mais talentoso que Johnny Cash fosse – e ele era – nem ele nem nenhum dos outros cinebiografados musicais inventou a música. Aqui, no entanto, estamos falando de um cara que literalmente mudou o mundo ao ajudar a criar o computador pessoal. Se a mudança foi para melhor ou pior, dá uma discussão boa, mas que ele mudou, mudou, e isso é inegável.

Assim, aqui não acompanhamos apenas a história de alguém com muitos predicados na sua área, mas o surgimento da computação como a conhecemos hoje. E isso é deveras interessante, embora em alguns momentos os diálogos fiquem um tanto técnicos demais.

O roteiro, inteligentemente, foca principalmente no trabalho do Jobs (hein? Hein?), mostrando bem pouco da sua vida pessoal ou mesmo de sua personalidade fora do trabalho. Quando mostra, no entanto, deixa claro que o cinebiografado em questão era um grandessíssimo FDP. Além disso, quando se arrisca fora do tema principal, o longa também se perde na narrativa.

Por exemplo, um dos principais conflitos pessoais do protagonista é a filha que ele se recusa a assumir. Em determinado momento, o filme dá um salto temporal e, quando vemos o sujeito de novo, ele está casado com a mulher que abandonou e tratando a filha que dizia não ser dele como se nada tivesse acontecido. Não é um processo que foi mostrado ao longo da projeção, até porque essa história não tem muita importância em nenhum momento. É vapt-vupt e isso, amigo delfonauta, é narrativa quebrada e ruim.

CHITÃO KUTCHER É EMPREGOS

Uma coisa que todos querem saber é como o ator está no papel. Bom, eu já falei na minha resenha de Runaways porque eu considero interpretar pessoas reais muito mais fácil do que criar um personagem, com personalidade e maneirismo próprios e inéditos.

Caso clicar no link acima seja trabalho demais para vossa majestade, basicamente, imitar é algo que qualquer um faz, sem carecer de habilidade ou trabalho. Para manter no âmbito brasileiro, pense em quantas pessoas você já viu imitando o Silvio Santos e quantos atores já viu interpretando algum personagem tão marcante quanto um Capitão Nascimento.

Então eu sinceramente não tinha muitas dúvidas de que Ashton cumpriria o papel de Steve satisfatoriamente, mesmo com suas habilidades limitadas. O que deixa um ator realmente parecido com o cinebiografado normalmente é o figurino/maquiagem e coisas que nada têm a ver com o trabalho de atuação. Então, sim, tanto Ashton quanto as outras pessoas reais representadas aqui estão fisicamente bem parecidas com suas contrapartes de carne e osso.

Falando da atuação, por outro lado, o senhor Demi Moore deixou a dever, pois se limitou a andar com postura ruim e sem mexer os braços. Teria sido bastante recomendado que ele mudasse um pouco sua voz e a forma de falar, demonstrando um jeito mais nerd e mais parecido com o Jobs de verdade. Mesmo neste filme, ele ainda fala com a mesma tonalidade e jeitão do Kelso de That 70’s Show, então é difícil de ver o Mr. Apple sempre que ele abre a boca.

TODO EMPREGO TEM UM FIM

Jobs termina antes do que deveria. Não vemos a criação do iPod ou do iPhone, os gadgets que realmente tornaram a Apple uma empresa popular, não limitada apenas aos macfags e aos que trabalham com edição de imagem. E eu até entendo porque fizeram assim: o arco dramático havia se completado.

Como dizem nas aulas de roteiro que eu acabei de inventar, há uma hora e lugar para mostrar a pintudice do seu protagonista, e isso se chama Ato II. Depois que você mostra os perrengues e o personagem saindo por cima, você completa o arco dramático e tem o final feliz.

Continuar a história a partir daí, mostrando triunfo atrás de triunfo, ia fazer o final virar piada, mais ou menos como os 42 finais de O Retorno do Rei. Ou então exigiria um retrabalho da estrutura tradicional de roteiro que existe desde antes de Cristo. E dificilmente veremos algo que exige tanta criatividade no cinema atual, especialmente em uma cinebiografia. Ainda que fizesse sentido que tentassem inovar ao contar a história de um cara que prezou tanto pela inovação.

O LADO BOM DE EMPREGOS

Talvez a impressão que estou dando seja negativa, mas a verdade é que eu recomendo Jobs. Digo mais, temos aqui uma das duas cinebiografias que posso dizer que considero boa de verdade (a outra é A Rede Social).

Apesar do oportunismo claro e da infelicidade ao se escolher o ator principal, o tema que ele aborda é fascinante e de muita importância na formação do mundo de hoje. Embora eu passe praticamente toda a minha vida na frente de uma tela (seja por trabalho ou por diversão), eu nunca pesquisei ou parei para pensar na origem dos computadores pessoais. Assim, o filme acaba servindo como porta de entrada para começar a entender melhor este mundo.

Além disso, a direção de Joshua Michael Stern, do decepcionante Promessas de um Cara de Pau, está bem afiada. Temos aqui um filme visualmente belo e com uma trilha sonora tão legal que acaba tornando o ato de assisti-lo um prazer audiovisual, mesmo para aqueles que não têm tanto interesse no tema ou, como eu, tenham medo de cinebiografias e do Ashton Kutcher.

Assim, temos aqui a primeira resenha positiva escrita por mim para uma cinebiografia. Então escolha o seu sinal do fim do mundo: Ashton Kutcher em um papel oscarizável ou eu falando bem deste filme. Seja como for, uma coisa é certa. O sétimo selo foi quebrado e o fim está próximo.

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Nota
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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. É o autor dos livros infantis "Pimpa e o Homem do Sono" e "O Shorts Que Queria Ser Chapéu", ambos disponíveis nas livrarias. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
jobsPaís: EUA<br> Ano: 2013<br> Gênero: Cinebiografia<br> Roteiro: Matt Whiteley<br> Elenco: Ashton Kutcher, Dermot Mulroney, J.K. Simmons e Josh Gad.<br> Diretor: Joshua Michael Stern<br> Distribuidor: Playarte<br>