A primeira vez que percebi a genialidade de Steve Martin, não como ator, mas como contador de histórias, se deu de forma interessante. Houve uma época, há alguns anos, que eu comprei, por um ímpeto inexplicável, alguns DVDs de filmes que eu ainda não tinha visto. Sabia que era um risco e me dei mal com a maioria deles, dentre os quais posso citar Limbo como a maior prova de que joguei dinheiro fora. No entanto, como em tudo na vida há uma exceção, constatei depois que um único filme dessa leva era realmente bom, mesmo com um título que não se podia levar muito a sério: Os Picaretas.
Talvez para a maioria seja um filme engraçadinho, ingênuo e nada muito além disso. Mas para um estudante de cinema que tinha (e continua tendo) o sonho de ver seu longa-metragem projetado em tela grande pelo menos uma vez na vida, esta história do cineasta Bowfinger, que faz de tudo pelo filme no qual acredita, não é somente uma boa comédia com Steve Martin e Eddie Murphy. Na minha opinião, o final de Os Picaretas é comovente de verdade e o filme consegue levar Steve Martin (enquanto roteirista) ao nível mais alto dentre os criadores de histórias americanos, mesmo ele tendo escrito anteriormente outros bons roteiros como o de L.A. Story e Roxanne. Para comprovar isso, chega essa sexta aos cinemas Garota da Vitrine, filme baseado em sua curta obra literária (de apenas 130 páginas) e roteirizado pelo próprio Martin.
A história é simples, porém repleta de conflitos internos de seus personagens, ou seja, um prato cheio para o trabalho dos atores. Mirabelle (interpretada por Claire Danes) é a vendedora do balcão de luvas da Sacks Fifth Avenue, e fica num setor da loja que é pouco freqüentado. Ela passa o dia de pé e completamente entediada para, mais tarde, em seu tempo livre, poder se dedicar ao sonho de se tornar uma artista. No fundo, o que a mocinha quer mesmo é ser amada e reconhecida pela boa pessoa que é, mas isso não é muito fácil numa cidade como Los Angeles, ainda mais para alguém que morava com os pais em uma pequena casa em Vermont, praticamente do outro lado do continente americano.
A carência leva Mirabelle a começar um estranho relacionamento com o jovem Jeremy (Jason Schwartzman), que trabalha no design de amplificadores de som, mas tem pouca ambição e quase nenhum dinheiro. Eis que entra na vida da moça um homem chamado Ray Porter (Steve Martin), charmoso, apesar de bem mais velho e, ao contrário de Jeremy, muito rico. Mirabelle começa um relacionamento amoroso com Ray, mas, com o tempo, percebe que ele também é um homem estranho, à sua maneira. Ela fica dividida e, ao final, tem de optar entre um deles.
Lá pela metade do filme lembrei de algo que costumava escutar em Brasília, na minha juventude. Era a seguinte pergunta: “Você prefere ser muito feliz em um fusquinha, ou infeliz em uma Mercedes?”. Geralmente eram mulheres que perguntavam a outras mulheres, esperando a conclusão óbvia, pelo menos em Brasília, que é preferível ser infeliz em uma Mercedes. Não é de hoje que essa questão é comum ao nosso universo, mesmo que, às vezes, não se fale a respeito disso publicamente. Se for uma pessoa que se importa mais com dinheiro, seja ele disfarçado por palavras como estabilidade, algo em que se apoiar, ou algo do tipo, o final é infeliz em uma Mercedes. Caso contrário, se a pessoa não ligar muito para os cifrões, optará por ser feliz no fusquinha. Já vou explicar o porquê dessa digressão.
O que humaniza de uma forma poética este Garota da Vitrine, além das atuações impecáveis de Claire Danes, Steve Martin e Jason Schwartzman, e do trabalho competente do diretor Anand Tucker, é justamente uma história que se afasta das respostas fáceis, costumeiras em Hollywood. O roteiro de Steve Martin consegue mostrar que não é simples decidir uma questão que envolve relacionamentos amorosos. Mirabelle ama Jeremy e também ama Ray Porter, independentemente de um ser pobre e o outro rico. A decisão que ela é obrigada a tomar em determinado momento do filme é muito mais difícil do que a questão superficial do fusquinha e da Mercedes. Aí está o ponto que diferencia este filme dos demais: o espectador se identifica com Mirabelle de tal forma que consegue entender o drama humano de sua escolha, em toda a sua complexidade.
Steve Martin disse que compara sua história a um romance de Jane Austen (aquela que escreveu Orgulho e Preconceito, recentemente adaptado para o Cinema), com a diferença óbvia do contexto temporal, ou seja, a história não se passa no século XVIII, mas nos dias de hoje. Não vou entrar no mérito da questão literária, mas acredito que esta comparação faz sentido. E o resultado disso no cinema? Uma obra autêntica, repleta dos mais verdadeiros sentimentos humanos em suas diversas nuances e contradições tão comuns, que fazem rir e também chorar. Um filme simples e muito bom.