E se, de repente, você perdesse a visão? E se aqueles em quem você se apóia também perdessem a visão? E se a cegueira se tornasse contagiosa e toda a humanidade ficasse cega? Como você reagiria diante do caos? Essa é a idéia – como o próprio nome sugere – desse clássico da literatura mundial, escrita pelo vencedor português do Nobel José de Sousa Saramago.
Clássico esse que, recentemente, engrossou a lista das adaptações cinematográficas. Não consigo imaginar como a obra originaria uma boa película, mas, enquanto não assistir ao filme, não posso mesmo opinar sobre isso. Aliás, não assisti ainda por receio, e acho que não farei tão cedo.
Outro detalhe a ser citado, antes de qualquer coisa, é que o livro nos é apresentado, a pedido do autor, em português de Portugal (antes da mudança para o miguxês), sem parágrafos, com poucos pontos e muitas vírgulas, idêntico ao texto original. O que, a princípio, parece um empecilho, acaba tornado a narrativa e a leitura extremamente dinâmica. Tanto é que a partir de certo ponto você nem percebe mais isso e nem sequer sente falta dos parágrafos que, em excesso, são a salvação dos leitores mais preguiçosos. Deixando os detalhes supérfluos de lado, vamos à obra:
A história tem início quando um taxista adquire uma cegueira súbita – diferente da cegueira normal por ser branca, como uma luminosidade absoluta e constante – ao estar parado no sinal de trânsito. Com ele, inicia-se uma onda de contágio incontrolável. O primeiro a sofrer o contágio é o médico que o examina e, ao estudar o caso, passa a padecer do “mal branco”.
A doença misteriosa não tem precedentes na medicina e, como tentativa de conter o surto epidêmico, o governo, em nome da proteção às pessoas que ainda não cegaram, coloca os contagiados em quarentena. (ou seja, ao invés de encarar o problema e encontrar soluções, o governo tenta isolá-lo aplicando uma solução paliativa, igual ao que acontece normalmente no nosso mundinho real).
Nessa quarentena, ficam em uma ala os cegos e, em outra, as pessoas que tiveram contato com eles. Em poucos dias, no entanto, todos da quarentena estão cegos, à exceção da esposa do médico já citado (que foi para a quarentena por iniciativa própria, para cuidar do marido, em um ato altruísta). E é pelos olhos dela que se passa a história.
O contágio acontece em um ritmo frenético, e os cegos passam a ter sua vida e suas ações ditadas por aqueles que ainda enxergam, e que permanecem à maior distância possível, apenas enviando alimento para as pessoas em quarentena.
Mas essa situação dura pouco tempo, pois até mesmo os governantes e os militares encarregados de controlar a situação – coisa que fazem de modo despótico, em parte devido ao medo do contágio – acabam cegando.
Como ficam então as pessoas? Reduzidas à condição de total incapacidade, as pessoas tornam-se como animais, onde apenas se dá atenção às necessidades básicas. O egoísmo de cada um transparece no que se torna uma luta pela sobrevivência.
Com a cegueira de todos, fica em voga a essência de cada um. Para ampliar essa impressão no leitor, o autor não dá nome aos personagens, não dá nome ao lugar e nem mesmo cita data alguma. Referências como “o médico”, a “esposa do médico” ou “o homem da venda preta” são uma constante em toda a obra.
Assim, pelos olhos da “esposa do médico”, vemos um vaivém entre a humanização e a desumanização. Entre o egoísmo e a solidariedade. Pelos olhos dela descobrimos que nem sempre ver o que os outros não são capazes de ver é um dom ou uma benção. Pelo contrário, pode ser uma maldição ter de encarar a dura face do instinto de sobrevivência predominando frente à civilidade. Com isso, ela torna-se a responsável por aqueles que estão à sua volta, sendo os olhos e a força de todos e possibilitando a resistência em meio ao caos.
Ao concluir a leitura deste livro, pode-se dizer com toda certeza que Saramago é capaz de captar com maestria os sentimentos humanos em sua forma mais pura e, algumas vezes, extrema e primitiva. Ele consegue fazer o leitor repensar seus anseios e angústias e visualizar claramente o abismo existente entre nossas necessidades e nossos desejos.
Ainda mais, podemos dizer que o livro nos faz duvidar da “capacidade” humana de governar ou ser governado e contesta nossa passividade diante da verdade que nos é imposta por aqueles que nos representam.
Por que, então, com tantos adjetivos, a obra de Saramago não merece cinco Alfredos? Ora, como todos sabem (ou deveriam saber), Saramago é um inveterado comunista, e o livro dele, apesar de genial, é uma crítica aguda ao moderno capitalismo, que muitas vezes rompeu a barreira da civilidade e barbárie, assim como ocorre por aqui.
Não é que ele não mereça cinco Alfredos pelo simples fato de o autor ser comunista. Aliás, não dá para negar que a sociedade moderna muitas vezes extrapolou limites em nome de ideais como liberdade e progresso.
No entanto, não se pode dizer que o Comunismo consiga o êxito que o Capitalismo não conseguiu. Uma suposta igualdade em detrimento de outros direitos básicos e próprios da personalidade humana não é suficiente para estabelecer um governo justo e ideal. Aliás, não há que se criticar apenas o comunismo ou o capitalismo, sendo que nenhuma forma de governo ou sistema econômico e social até agora se mostrou suficientemente apto.
Com todos esses fatores, nem é necessário dizer que Ensaio Sobre a Cegueira é, de fato, uma leitura obrigatória. Não apenas aos entusiastas dos livros, mas a todos que gostam de pensar por si só. É um clássico que merece ser lido por oferecer muito mais do que mero entretenimento durante sua leitura.