Com Demolidor (Daredevil), a primeira de um pacote de séries produzidas e exibidas pelo Netflix, a Marvel dá um passo além no desenvolvimento de seu universo interligado nas mídias audiovisuais. E trata-se de um passo ousado, saindo do tom apresentado até aqui em seus filmes e séries e apresentando algo mais sombrio, realista e violento. Em suma, algo com a cara das boas histórias do Demolidor nas HQs.
Com os 13 episódios disponibilizados de uma vez só, o formato serializado se mantém, com cada episódio tratando de um tema e terminando com um gancho para puxar o próximo, mas também pode ser encarado como um filmão de 13 horas mostrando os primeiros passos do advogado cego Matt Murdock nos caminhos vigilantes e entrando no radar de gente graúda do porte de Wilson Fisk.
E se você quiser uma comparação com o longa de 2003 estrelado pelo Ben Affleck, basta dizer que só as três cenas iniciais do primeiro episódio – o flashback mostrando o acidente que cegou Matt, a conversa com o padre no confessionário e o Demolidor em ação nas docas – dão um cuecão, roubam o dinheiro do lanche e empurram a aberração do filme para dentro do banheiro das meninas. Esqueça o grande erro do passado, este aqui é o Demolidor como sempre deveria ter sido feito.
O HOMEM SEM MEDO
Não nego que o defensor da Cozinha do Inferno é um dos meus personagens favoritos da Marvel (provavelmente por ele ser mais próximo do Batman), principalmente a inesquecível passagem de Frank Miller (embora a fase de Mark Waid atualmente sendo publicada no Brasil também esteja muito boa, com uma versão mais despretensiosa e ensolarada do personagem), mas a série conseguiu superar qualquer expectativa que eu tinha ao surpreender com essa cara diferente de tudo que havia sido apresentado nas telas até então.
Muito menos super-heróico, aqui a coisa é mais seriado policial, tipo um The Wire com um sujeito vestido de preto espancando bandidos. A escala é menor, nada épica, afinal o personagem é o protetor da Cozinha do Inferno e essa é sua área de atuação. A interligação com o resto do universo Marvel aqui rende apenas algumas menções e o fato de que a cidade está sendo reconstruída após a “batalha de Nova Iorque” de Os Vingadores, o que rende um prato cheio para os mafiosos por trás das empreiteiras.
A principal referência é justamente a fase de Frank Miller, especialmente a minissérie O Homem Sem Medo, que reconta suas origens e primeiros dias como vigilante e de onde o uniforme preto improvisado foi inspirado. Todos os elementos famosos do personagem estão presentes.
Seus sentidos ampliados, representados de forma simples, porém muito eficaz, a relação com o pai, sua culpa católica que ocasionalmente o faz questionar se está fazendo a coisa certa, e a determinação cega (com o perdão do trocadilho) em levar sua missão à frente, mesmo que às vezes pareça uma tarefa impossível.
E principalmente o sacrifício, algo bastante explorado nessa primeira temporada. Matt, apesar de seu treinamento, ainda é essencialmente inexperiente, e aqui apanha tanto quanto bate nos meliantes. O cara sofre, levando castigos monumentais, ficando à beira da morte, mas sempre persistindo. Afinal, como seu pai lhe ensinou, Murdocks caem, mas sempre se levantam.
UM MUNDO EM CHAMAS
A já referida violência é constante e as lutas são brutais e até muito mais gráficas do que o esperado. Os trailers já deixavam claro que ia ter sangue, mas o negócio é bem mais hardcore, com direito até a fratura exposta, ressaltando que a coisa aqui é séria. A pancadaria atinge seu ápice já no final do segundo episódio, em uma longa tomada sem cortes em um corredor, um verdadeiro primor de técnica.
Toda a gama de personagens coadjuvantes está perfeita e todos têm sua importância para a narrativa, ninguém está lá só para encher linguiça. Dentre eles destacam-se Karen Page, que surge como o primeiro caso da firma Nelson & Murdock, o próprio Foggy, que não é apenas um alívio cômico, inclusive protagonizando um dos melhores episódios da série, o repórter Ben Urich e Wesley, o braço direito de Wilson Fisk, um daqueles clássicos capangas almofadinhas.
Outro personagem importante e que até aparece bem menos que o imaginado é a enfermeira Claire, responsável por remendar Matt após suas noites de pancadaria quase suicida. É através dela que Matt vai revelando como coloca em prática suas habilidades especiais, inclusive explicando como ele “enxerga” o mundo com seu radar.
Contudo, o destaque fica mesmo por conta das atuações centrais. Charlie Cox está perfeito tanto como o determinado e simpático Matt Murdock quanto como Demolidor, ameaçador e violento em iguais medidas. E Vincent D’Onofrio parece ter saído direto das páginas dos quadrinhos como Wilson Fisk. Ok, ele não é tão grande quanto sua contraparte de papel, mas na pele do filantropo que secretamente manda no crime organizado da cidade ele está assustador, passando a sensação de que a qualquer momento vai perder o controle e partir para a violência física, como um cachorro louco fora da coleira, ainda que o melhor momento de interação entre os dois seja na realidade um embate verbal.
O DEMÔNIO DA COZINHA DO INFERNO
Os flashbacks que permeiam os episódios são eficazes em mostrar as origens (de Matt ou de outros personagens) e passar informações importantes sem ter de explicar essas coisas de forma expositiva, o que é um bônus e contribui para a boa direção geral de todos os capítulos.
Contudo, chega até a ser curioso que as ocasiões menos tremendonas da temporada sejam justamente quando a série mais se aproxima dos momentos mais fantasiosos e exagerados tão característicos dos quadrinhos, tirando um pouco o pé do chão, principalmente no sétimo episódio, que introduz Stick e é o que mais foge da estética policial setentista utilizada.
Ainda assim, isso não é o bastante para tirar o brilho de uma primeira temporada irretocável, que deixa o herói pronto para uma já confirmada second season (sem contar sua participação em Os Defensores), inclusive apontando a utilização de elementos mais fantásticos da sua mitologia e com muitos outros personagens que podem dar as caras.
Como a primeira série da parceria Marvel/Netflix, Demolidor surpreende num primeiro momento por fugir do padrão que a Marvel vinha apresentando até então. Contudo, isso é apenas uma ferramenta narrativa e, ao final de seus 13 episódios, fica a certeza de que foi feito assim porque a história pedia e renderia mais dessa forma. Fica também a enorme qualidade do produto final. Deixa um otimismo (e uma responsabilidade) gigante para as próximas séries (A.K.A. Jessica Jones será a próxima) e uma história que deve deixar qualquer fã do Homem Sem Medo com um sorriso de orelha a orelha. Correndo o risco de terminar numa redundância, mas já o fazendo, a Marvel acertou de novo.
CURIOSIDADE:
– A série é a primeira produção do Netflix a disponibilizar o recurso de áudio descrição para deficientes visuais. Trata-se de uma narração que descreve todas as ações que estão acontecendo na tela. Outras produções do Netflix passarão a contar com este serviço daqui para frente, mas fica a boa sacada pela série do herói cego ter sido escolhida como a primeira.