A gente já viu muitas, inúmeras, cinebiografias musicais. Porém, uma coisa diferente é uma cinebiografia em que os artistas são a parte secundária da história. Esta é nossa crítica A Era de Ouro, biopic cujo protagonismo é de Neil Bogart, o sujeito responsável por a gente conhecer um monte de músicas e artistas legais.
CRÍTICA A ERA DE OURO: CINEBIOGRAFIA TOTAL
O filme conta praticamente toda a vida de Neil Bogart, incluindo suas várias mudanças de nome, trechos da infância e, infelizmente, passa apenas de passagem pelo episódio em que ele fez um softporn. O foco, claro, é na parte musical da sua carreira.
Ele teve uma passagem muito bem-sucedida pela Buddah Records, onde ajudou a tornar conhecida muita gente legal. Porém, após sair da Buddah, ele formou a Casablanca Records, um selo que começou com parceria com a Warner, mas eventualmente se tornaria o maior selo independente da história.
O primeiro artista da Casablanca foi a “banda mais quente do mundo”, o Kiss, e depois veio mais um monte de gente legal, do calibre de Donna Summer, Parliament e Village People. Com tanto talento em seu cast, a gente pode pensar que a Casablanca foi um unicórnio, um sucesso imediato. A Era de Ouro conta outra história.
TALENTO + NEGÓCIOS
Uma coisa que se tornou bem clara para mim nestes quase 20 anos de DELFOS é que não basta ser bom no que você faz se não conseguir levar isso para as pessoas. No nosso caso, acredito que temos aqui um dos maiores e melhores acervos de reviews culturais disponíveis na internet. Mas como eu nunca tive o tino empresarial necessário, a gente não é constantemente citado como fonte na Wikipédia ou conhecido pelo público em geral.
Neil Bogart é, para os artistas de seu selo, o que eu precisaria para o DELFOS. Ele via o potencial no Kiss e na voz da Donna Summer, mas boa parte do conflito do filme é como ele faria as outras pessoas verem isso. Citando o Kiss como exemplo, ele percebe que as pessoas adoravam os shows, mas não compravam os discos. Daí vem a ideia de capturar como era um show do Kiss. O que saiu daí, Kiss Alive, é um dos discos ao vivo mais famosos da história.
E daí a gente entra na discussão: o que está aqui é verdade? Desde que eu vi que a esposa do Neil Bogart se chamava Beth, fiquei esperando a música do Kiss acontecer no filme. Mas há divergências sobre a origem mostrada aqui. Ora, o diretor do filme é Timothy Scott Bogart, filho do Neil Bogart. E o longa começa com Neil falando que toda a história é verdade, até as partes que são mentira.
CINEBIOGRAFIA DE FICÇÃO
Afinal de contas, cinebiografia é diferente de documentário. Não existe, necessariamente, um compromisso com os acontecimentos históricos, mas sim com narrativa, entretenimento. E de fato, se eu quiser ler sobre a vida de Neil Bogart, há muito material disponível na internet. O que importa para esta crítica A Era de Ouro é que o filme é realmente legal.
Embora Timothy Scott Bogart não tenha dirigido nada muito conhecido (o único longa que ele dirigiu antes deste é Touched, de 2005), o cara manda bem. Tem um monte de planos muito bonitos, montagens criativas e a narrativa é bacana o suficiente para fazer com que a longa duração não seja exatamente cansativa.
Muito disso se deve ao fato de que a história que conta é interessante, justamente porque a gente costuma ver muito o lado do talento, mas as pessoas que ajudam o talento a brilhar costumam ser secundárias. Neil Bogart está longe de ter sido uma figura secundária da história. Tal qual David Geffen ou John Kalodner, o seu é um nome que pessoas apaixonadas pela música conhecem. E eu definitivamente sou uma dessas pessoas.
AMOR PELA MÚSICA
Eu amo música. Verdade, gosto e entendo mais de rock, mas ouço e gosto de muitos estilos. Todas as músicas mostradas neste filme, por exemplo, considero excelentes. A ponto de que esta deve ser uma das trilhas sonoras mais interessantes do cinema, especialmente porque, apesar de ter várias canções conhecidas, todas foram regravadas pelos atores que fazem os músicos no filme.
Sim, eu sabia que Neil Bogart foi muito importante na história do Kiss, mas é muito legal ver sua participação em outros artistas e músicos conhecidos – e qualitativamente comparáveis. Mas é sempre importante fazer a distinção: cinebiografia não é documento histórico. O Kiss, por exemplo, toca músicas antes de elas terem sido compostas na vida real, muito provavelmente porque elas serviriam melhor para aquele momento, narrativamente. Aliás, me chamou atenção que A Era de Ouro usa músicas e o logo da banda, mas criou maquiagens alternativas para os músicos. Gostaria de saber a história por trás dessa opção.
De qualquer forma, mesmo com o fator fictício de uma cinebiografia, é muito legal ver a importância que um cara como Neil teve para a criação da imagem comercial dos artistas. A Donna Summer, por exemplo, de acordo com o filme, fez sucesso ao regravar uma música que tinha gravado antes e passado batida, apenas em uma versão mais sexy (visual e sonoro). Precisa ser genial para fazer música com essa qualidade, mas também precisa ser genial para fazer isso chegar às pessoas.
O PREÇO DO SUCESSO
A gente costuma achar que para alguém com a voz linda da Donna Summer, o sucesso viria naturalmente, que é apenas questão de tempo. E o próprio cinema e as cinebiografias são culpados por nos fazer acreditar nisso. A cultura pop gosta de mostrar sucesso como um benefício natural do talento, e a gente sabe que não é bem assim. Muito provavelmente você conhece pessoas – ou talvez seja uma – com enorme talento criativo mas que trabalham em profissões mais mundanas. Há muito por trás do sucesso cultural além de um elusivo e fictício direito divino. Mesmo que a gente goste de acreditar nisso.
E, olha, A Era de Ouro é tão culpado quanto seus antecessores musicais. O Neil Bogart do filme é um cara com carisma absurdo, o que o faz atrair investidores. Porém, sua inicial incapacidade em fornecer um ROI aceitável o coloca em maus lençóis. Olhe além da cortina de fumaça e o que o filme apresenta é um sujeito que apostava milhões de dólares que não eram seus, e comumente perdia essas apostas. É a receita para uma pessoa na vida real ser assassinada por agiotas ou viver na falência. Mas o filme, e o personagem, constantemente repetem a frase “é uma questão de tempo”. Isso vende a ideia de que ele sabe o que fazer, é um visionário, e elimina totalmente o fator aleatório e importantíssimo da sorte.
DELFOS E A CRÍTICA A ERA DE OURO
Na vida real, é necessário sonhar e acreditar nos seus sonhos. Mas também é importante saber quando desistir. Se você é delfonauta de longa data, deve se lembrar de nós fazendo brincadeiras sobre dominar o mundo, e coisas assim. Na época, eu acreditava nisso, mas com o tempo fui medindo as expectativas. Sonho é onde você começa antes de cair na realidade. Hoje eu fico apenas feliz em ter aqui uma plataforma para emitir minhas opiniões, e ainda mais feliz por você ser uma das pessoas que lê o site. São menos do que eu gostaria, mas eu valorizo muito que você exista e faça parte desta humilde comunidade que eu criei. Que falhou em dominar o mundo, mas foi bem sucedida em juntar nossas vidas, pelo menos um pouquinho. E se você faz parte deste sonho e quer ajudar ele a continuar existindo, fique à vontade para fazer um pix de qualquer valor para delfos@gmail.com. Qualquer valor ajuda, pois simplesmente manter o site no ar com todo esse conteúdo, mesmo sem atualizações, é custoso.