Na atual cronologia dos quadrinhos de super-heróis, o mundo real definitivamente tomou conta das tramas. O Capitão América pós-11 de setembro tornou-se mais violento, militarizado e intolerante. Os heróis da Marvel Comics lutam entre si por conta de um projeto de lei que é, em substância, retrato fiel do que está acontecendo dentro do próprio território estadunidense, no tratamento do governo aos imigrantes dentro do chamado “Ato Patriótico”. Um estupro inexplicável é a chave para a onda de violência e para a discussão ideológica em torno da lobotomia (!) surgida em Crise de Consciência, série que mostrou o lado sombrio de boa parte dos mascarados da DC Comics.
Caso você não tenha notado, as histórias dos nossos vigilantes uniformizados favoritos foram, nas últimas décadas, infectadas pela maturidade dos quadrinhos independentes e/ou adultos, trazendo à baila temas que deixariam papais e mamães da geração Turma da Mônica de cabelos em pé. Aquela inocência, a dicotomia típica da Era de Ouro e da Era de Prata, quando você sabia claramente quem eram os bonzinhos e quem eram os malvados, todos estes elementos se foram, definitivamente.
Não que eu esteja reclamando, veja bem. Gosto mesmo de ler este tipo de histórias instigantes e que me provocam como leitor, sem subestimar a minha inteligência de fã com quase trinta anos de idade. Mas, vez por outra, é uma delícia se deixar levar pelo gostinho de passado, quase infantil, de uma compilação como As Tiras do Homem-Aranha, que reúne as histórias que a dupla Stan Lee e John Romita Sr. produziu exclusivamente para os jornais de 3 de janeiro de 1977 a 28 de janeiro de 1979. Ler estas histórias é quase como viajar no tempo, para uma era não tão distante assim, quando éramos aquelas crianças para as quais as coisas eram mais simples e com um forte sabor de iogurte de morango. Sabe as reprises daquela novela retrô que Tobey Maguire (que ironia, não?) assistia incansavelmente na TV no filme Pleasantville – A Vida em Preto e Branco? Bem por aí.
Verdade seja dita: Lee criou os maiores e melhores astros da Marvel, mas nunca foi um argumentista brilhante. Longe disso. No entanto, o velhinho sabia cozinhar clichês e obviedades como ninguém, e dar-lhes um temperinho bem especial. Não tem nada mais eficiente do que fazer um bom feijão com arroz ao invés de se perder nos muitos aromas da culinária mediterrânea. Desta receita básica, Lee entendia muito bem. O segredo de seus personagens era justamente a constatação de que eles eram pessoas comuns, como nós, cheias de defeitos cotidianos.
Apesar dos superpoderes e das aventuras incríveis, o leitor queria mesmo saber, assim como um daqueles ávidos consumidores de folhetins globais, como diabos ia indo o casamento de Reed e Susan depois daquela luta terrível contra o Doutor Destino. Era de se esperar que, dentro deste contexto, sua obra-prima fosse ser mesmo um jovem fracassado e com dificuldades para cuidar da tia idosa e freqüentemente doente… e que, por um acaso do destino, acaba sendo picado por uma aranha radiativa.
Nesta coleção de doze diferentes arcos de histórias, Lee se vê completamente livre das amarras da tal da cronologia, quase como que numa espécie de universo Ultimate – mas sem tanta criatividade renovadora assim. Vamos com calma. Este seu Homem-Aranha independe do que acontece com sua contraparte publicada mensalmente nos gibis da época, o que deixa o autor livre para brincar com os conceitos que ele mesmo criara cerca de uma década antes, de maneira a adaptar certos detalhes para uma linguagem e um público radicalmente díspares.
Para contar trechos fechados de uma história dentro de três quadrinhos, cuja continuação acontece apenas no dia seguinte, é necessário “recontar” um pouco do que rolou na tirinha anterior, usando boas doses de criatividade para evitar que a coisa se torne maçante e repetitiva. E o homem do Excelsior faz isso com maestria. O timing realmente é mais acelerado do que num gibi comum, exatamente porque ele dispõe de pouco tempo para desenvolver as tramas com a profundidade que 16 ou 24 páginas permitiriam e os diálogos tendem a ser mais simplistas e “rasos” justamente para conduzir as aventuras com mais agilidade. Mas é tudo questão de se acostumar. Pode levar algum tempo, mas você pega o jeito.
Aqui, vemos um Peter Parker na época da faculdade, morando fora da casa da Tia May e namorando, aos trancos e barrancos, com uma Mary Jane freqüentemente cercada pelas investidas de Flash Thompson. Uma certa colega de universidade, Carole, é apaixonada por ele sem que o Cabeça de Teia suspeite. Fotógrafo freelance do Clarim Diário, ele tornou-se o Homem-Aranha há pouco tempo e, antes mesmo de adquirir os poderes aracnídeos, já tentara uma vaguinha na equipe do intolerante J.Jonah Jameson – o que já significa uma mudança considerável no que conhecemos até então, pois na versão de 1962, Peter recebeu os poderes ainda na escola, aos 17 anos, e só foi dar seus cliques depois da morte do Tio Ben.
Outra grande diferença é na versão da origem do Mysterio, vilão clássico que, aqui, não é Quentin Beck mas sim Hadley Harper (como este Stan Lee adora as letrinhas dobradas!), técnico de efeitos especiais que se torna o antagonista do Escalador de Paredes numa produção hollywoodiana que conta a própria história do Homem-Aranha – estrelada pelo próprio, em busca de uma graninha extra. O Mysterio desta cronologia particular surge como uma forma de impressionar a ex-mulher de Harper, produtora executiva da película. O resultado é uma das melhores histórias da compilação, com um final que chega a ser emocionante, envolvendo o filho do dono do estúdio em uma cadeira de rodas, tiete incondicional do Aranha.
Dignas de menção também são as histórias envolvendo a primeira aparição do caçador Kraven e a primeira visita diplomática do ditador Victor Von Doom aos EUA – ambas contando com a orquestração desajeitada de um maquiavélico e divertidíssimo Jameson para dar cabo de seu desafeto favorito. Não duvido que este material tenha servido de inspiração para que o ator J.K.Simmons desenvolvesse o tom cartunesco do personagem que interpreta na franquia cinematográfica do Teioso.
O traço do Papai Romita funciona especialmente na cristalização dos seres humanos comuns, sem uniformes e demais apetrechos “heroísticos”. Suas representações para Peter, MJ e demais coadjuvantes são carismáticas e cheias de vida, com expressões que, apesar da simplicidade dos traços, beiram o real. O sorriso da ruiva mais amada dos gibis (que Jean Grey o quê, meu!) é uma mistura de jovialidade com uma pitadinha de provocação sensual. As roupas que Romita desenha são tridimensionais, como que saídas realmente das ruas de uma cidade cosmopolita como a Nova Iorque da década de 70. Se considerarmos, portanto, que os maiores acertos de Lee nesta obra são mesmo os momentos particulares de Parker por baixo da máscara de teias, dá para dizer que escolheram o artista ideal para acompanhá-lo neste trabalho.
“As Tiras do Homem-Aranha” só não leva os cobiçados cinco Alfredos por um motivo: a quantidade excessiva de erros de português e deslizes de digitação. Produto desenvolvido especialmente para lojas especializadas e livrarias, esta edição especial visa os colecionadores, e não apenas os leitores eventuais. É um produto que os marketeiros chamariam de Premium (alta qualidade e alto preço). Sei que erros acontecem. Comigo, com você, com todo mundo. Mas eu esperava que, ao desembolsar salgados R$ 49,90, não tivesse que me deparar com um número tão exagerado de letrinhas faltando, acentos nos lugares errados, frases que não fazem sentido pela sobra de uma palavra fora de contexto (possivelmente deixada ali durante a edição final) e coisas do tipo. A Panini Comics sempre demonstrou um essencial respeito para com os fãs nestes últimos anos em que assumiu as revistas pós-Abril. Por favor, que continue assim daqui para frente. Compre aqui.
Nota do Corrales: Esses erros de português, tradução e digitação também permeiam um outro lançamento Premium da editora, o encadernado Marvel: 40 Anos de Brasil. Parece até que a Panini capricha mais em gibis que custam sete dinheiros do que nos que custam 50.