Na década de 90, quando um grupo de dissidentes da Marvel abandonou a editora para formar a Image Comics, testemunhamos a gênese de uma era nos quadrinhos de super-heróis que, sinceramente, não faz a menor falta. Eram páginas e mais páginas cheias de efeitos especiais, armas monstruosas, onomatopéias, heróis musculosos, ferozes e violentos e heroínas sensuais e seminuas – porém tão ferozes e violentas quanto seus parceiros. Antes disso, no entanto, Jim Lee e toda a trupe Image já tinham deixado suas sementes deste período sem cérebro na Casa das Idéias, uma espécie de efeito Independence Day nas HQs. A Todd McFarlane, coube a missão de criar para o Homem-Aranha um inimigo à altura desta nova geração. Surgia o Venom.
O mais engraçado é que o efeito Image se dissipou, dando lugar a histórias com um pouco mais de profundidade nos argumentos e sem a necessidade daquela multicolorida explosão plástica. Mas o Venom continuou. E, para ser bem sincero, ainda continua. E o que é pior: para alguns fãs do Escalador de Paredes, ele é o principal arquiinimigo da mitologia aracnídea.
Senhoras e senhores, vamos colocar aqui alguns pingos nos Is. Os grandes vilões da galeria do Aranha são o Duende Verde e o Dr.Octopus. Ponto. Isso não dá para discutir. Colocar o Venom num patamar assim tão alto não faz nenhum sentido. Estamos falando de um personagem oco, raso, cuja única missão sempre foi, desde o começo, ser “radical”. Um monstrão estiloso, que fica muito bem em splash pages, camisetas, tatuagens e capas de discos de heavy metal. Mas ele nunca funcionou como o pretenso “lado negro” do Homem-Aranha.
O Duende Verde e o Dr.Octopus são particularmente especiais porque os homens por trás dos vilões ecoam diretamente na vida do homem que se esconde por trás da máscara do Homem-Aranha. Pois é, amiguinhos, voltamos a um assunto já discutido por aqui: a grande graça das histórias do Cabeça de Teia é mesmo Peter Parker, e não o seu alter-ego heróico. Assim sendo, nada mais justo do que seus vilões serem igualmente representações diretas deste conceito.
Norman Osborn, pai do melhor amigo de Peter, é a lembrança constante de todos os erros que Peter cometeu ao longo de sua vida e de todas as pessoas que ele perdeu por causa de seu uniforme. Norman Osborn apela ao lado família, ao lado ser humano de Peter. Sim, Norman Osborn é um enorme complexo de culpa ambulante para o garotão (não sei bem se foi nisso que Stan Lee pensou, porque acho que ele estava mais interessado em criar polêmica para vender gibis, mas seguimos em frente). E quanto ao Dr. Otto Octavius, ele fala diretamente ao coração de cientista de Parker, o pesquisador curioso que ele insiste em esconder por trás da câmera fotográfica.
Mas o que sobra para o Venom? Quem está por trás daquela boca enorme e babona, com dentes protuberantes e uma língua dardejante? Eddie Brock. Ora, bolas. Como diabos transformar o Venom em um arquiinimigo de respeito para o Homem-Aranha se o homem que traja o uniforme negro não tem nem metade do carisma de Peter Parker?
Claro, estou aqui me referindo ao Venom clássico. Porque, se formos parar para pensar nesta versão do personagem com o Escorpião vestindo o simbionte, a conversa se dá por encerrada. A pouca graça que ele tinha se esvaiu e vimos o camarada transformar-se em um coadjuvante de luxo para Norman Osborn.
Para mim, o fracasso do Venom como personagem se dá pela falta de aprofundamento na psiquê de Eddie Brock. Numa tentativa de dar mais caldo ao lado humano do Venom, o roteirista Zeb Wells e o pavoroso desenhista Angel Medina (ai, jisuis!) fizeram uma minissérie de nome Venom: Origem Sombria, recém-publicada aqui no Brasil dentro da revista “Homem-Aranha”.
Uma vã tentativa, eu diria. Ali, o único retrato que se tem de Brock é um menininho mimado que passa a odiar Parker do dia para a noite simplesmente porque ele lhe tirou das mãos o seu brinquedo favorito – no caso, toda a história do Devorador de Pecados. Só faltou bater o pezinho. Faz favor, né? Faz mais sentido entender porque o simbionte, uma criatura orgânica que vive apenas de seus instintos primitivos, odeia o Homem-Aranha – sua comida favorita, o ser superpoderoso que o rejeitou – do que tentar engolir os motivos de Eddie Brock.
Bons vilões são aqueles que mexem tanto conosco quanto os heróis que enfrentam. São aqueles que roubam a cena. O Dr. Destino é um ego do tamanho do mundo, que acredita de fato ter uma missão em suas tentativas de tomar o controle da Terra. O Coringa é uma inacreditável força do caos que faz o Batman se questionar a cada minuto se pode ou não cruzar a linha fina do vigilantismo. E o Venom… ah, esse é apenas e tão somente força bruta. Força bruta por força bruta, sou muito mais o Rhino, por exemplo – que é uma enorme massa muscular sem cérebro e com boas doses de humor, sem precisar recorrer a adjetivos miguxos como “irado” ou “muito lôco”.
O recente desenho animado O Espetacular Homem-Aranha (passa na Cartoon Network) acerta mais no retrato do Venom do que sua contraparte das HQs. É criado um vínculo de amizade entre Parker e Brock, uma disputa juvenil elétrica e intensa que alimentaria muito mais facilmente a fúria daquela criatura alienígena perdida na Terra.
Mas, honestamente, eu ainda fico com a versão do vilão criada por Brian Michael Bendis no título ultimate do Teioso. Primeira coisa: o simbionte é um ser desenvolvido aqui na Terra, em laboratório, o que elimina um aspecto que me incomoda deveras no Venom: esta história de ser extraterrestre. Isso não combina em nada com as histórias do Aranha. Sempre fiquei de bode ao ver a Marvel colocar Peter Parker combatendo vilões no espaço, em outras dimensões ou qualquer lance assim.
O Homem-Aranha é um herói urbano, que combate esquisitos tipos fantasiados e desastres da ciência. É isso. Os ETs são da alçada do Quarteto Fantástico, assim como totens e coisas do gênero ficam a cargo do Dr. Estranho. O Aranha nesta ambientação cósmica e/ou mística só funciona quando o escritor sabe retratá-lo justamente como alguém fora de sua zona de conforto. E, cá entre nós, são poucos os roteiristas que entendem esta dinâmica.
Mas, voltando ao que interessa, Bendis foi além: ele também estabeleceu um nexo entre a família Brock e a família Parker, uma conexão científica entre seus pais, dando uma razão para que Eddie não goste de Peter. E ainda criou uma relação diferente entre Brock e o simbionte. Aquela massa negra sombria tomou o corpo de Eddie Brock sem que ele quisesse e o força a fazer coisas que ele não quer e das quais ele mal se lembra.
Não estamos falando de um homem bombado levantando halteres para ficar forte o suficiente para seu novo parceiro. Estamos falando de um garoto dentro de um pesadelo, assim como Parker. Esse garoto também se depara com poderes conseguidos acidentalmente, mas acaba se tornando um relutante matador de inocentes, uma ameaça que ele não consegue controlar. E mais: Brock ainda sente que aquele simbionte quer a biologia modificada de Parker. Eddie Brock se sente rejeitado por uma criatura que está dentro da sua cabeça. E este sentimento só ajuda a alimentar o ódio contra o Homem-Aranha. Os outros autores podem ter tentado. Mas Bendis foi o único que conseguiu tratar o aspecto “dupla personalidade” do malvadão de maneira eficiente e coerente.
Sejamos todos bem sinceros: MUITO melhor assim, não?
Sempre odiei o Justiceiro. Mas quando Garth Ennis deu a sua visão repleta de humor negro ao psicótico vigilante, eu vi as coisas funcionarem. Assim como vi Ed Brubaker fazer do Capitão América uma bandeira ambulante que de fato questiona o seu papel. É tudo uma questão de ponto de vista. Bendis entendeu o que não funcionava no Venom. E fez melhor. Muito melhor. Podemos todos fazer uma petição para que a Disney obrigue o Joe Quesada a adotar esta abordagem definitivamente, incluindo na cronologia regular do Aranha?