Nota: Se você não sabe de nada envolvendo o que aconteceu recentemente com o Homem-Aranha nos EUA, e pretende que continue assim, não leia esta matéria.
It’s a Kind of Magic, é o que cantarolava Freddie Mercury enquanto estalava os dedos alegremente – muitos anos antes de imaginar que a tal da “magia” seria o motivo alegado, da maneira mais simplória possível, para o reboot que a Marvel Comics promoveu na cronologia regular do Homem-Aranha, carro-chefe de seu principal plantel de personagens. A não ser que você, delfonauta fã de quadrinhos ou não, more na Zona Negativa, é claro que sabe muito bem que estou falando dos eventos acontecidos durante a saga One More Day, recentemente finalizados na revista gringa Amazing Spider-Man # 545 – e que causaram tamanha reação negativa por parte de fãs, críticos e comunidade artística, lotando os fóruns especializados com as discussões mais aquecidas e atingindo até mesmo a imprensa que nada tem a ver com o mundo dos gibis.
Para explicar tamanha cizânia (parece que alguém andou lendo Asterix) aos mais perdidos, vou tentar resumir o acontecido em breves palavras: ao final de Guerra Civil, depois que o Escalador de Paredes revela publicamente sua identidade secreta, um atirador contratado pelo vingativo Rei do Crime acerta um balaço na sua amada e idolatrada Tia May. A velhota fica entre a vida e a morte e nosso herói vai até os cafundós do universo da Casa das Idéias para tentar salvar a mulher que é como uma mãe para ele. Nenhuma solução extraterrestre, mutante, mística e/ou sobrenatural parece impedir que a resistente e semi-imortal May Parker vá, enfim, para a terra dos pés juntos. Até que surge ele. O vermelhão e diabólico Mefisto, senhor das trevas. E como bom diabão, ele oferece uma barganha: em troca de seu casamento com Mary Jane, Peter terá a vida de May de volta. Depois de muito pensar, e com o apoio da esposa, ele aceita. Mefisto, então, re-arranja a realidade de maneira que Peter e MJ nunca tenham se casado. Uma espécie de O Que Aconteceria Se… transformado em realidade. Ou seja: Parker-Boy ainda mora com a tia, ainda é fotógrafo do Clarim, ainda tem identidade secreta (nem o Demolidor sabe mais quem se esconde por baixo da máscara), ainda tem os lançadores de teia mecânicos… e ainda é amigo de um certo Harry Osborn, que nunca morreu e acaba de retornar da Europa, onde fez um tratamento para se recuperar de seu vício em drogas.
Ufa (espaço para você respirar depois de tanta informação).
Mais do que refletir sobre a bizarra decisão do corpo editorial da Marvel, representado pela folclórica e marketeira figura rotunda de Joe Quesada, faz-se necessária uma importante discussão a respeito de tudo de mais atroz que vem acontecendo com o Teioso nas últimas décadas.
Qual é o segredo do sucesso do Homem-Aranha, desde aquele número 15 da revista Amazing Fantasy, de 1962, escrito por Stan “The Man” Lee e desenhado pelo recluso Steve Ditko? É simples e cristalino como água: Peter Parker é um jovem como eu e você. Cheio de dúvidas, incertezas, defeitos, esperanças e problemas. Ele foi picado por uma aranha radiativa (ou “geneticamente alterada”, dependendo da cronologia) e ganhou superpoderes? Grande coisa. Ele ainda continua ralando todos os dias para pagar o aluguel, enfrenta diversos obstáculos para fazer amigos na escola, tem que driblar a marcação cerrada da tia altamente maternal e não consegue manter um relacionamento sequer com as garotas pelas quais se apaixona de maneira platônica.
Que nerd (ou ser humano, por mais que alguns virem o rosto e finjam que não estou falando com eles) nunca passou por problemas semelhantes? Bingo! Identificação imediata com os leitores de todas as idades! O grande atrativo das histórias do personagem sempre foi o homem escondido por trás da máscara e das teias, as tramas comuns e corriqueiras que seguiam em paralelo aos engajados combates com supervilões fantasiados pelos céus de Nova Iorque. Como a imprensa especializada gringa gosta de dizer, Peter Parker é o everyday man – ou, em bom português, o cara comum, daquele tipo que a gente encontra todo dia, seja no trabalho, na universidade, no boteco, na reunião de amigos, na lan-house, nas partidas de RPG ou, obviamente, na frente do espelho.
Conforme os anos foram passando e as desgraças se acumulando na vida do jovem Parker (em especial, as mortes do Capitão George Stacy e de sua amada Gwen), os roteiristas tenderam a fazer com que, pouco a pouco, o herói fosse envelhecendo e amadurecendo como os seus próprios leitores. E isso foi bem legal. Da escola, ele foi para a universidade. Foi morar sozinho. Fez novos amigos. Experimentou novos amores. E conheceu novas facetas de uma personagem que se tornaria muito importante em sua história a partir da década de 90: a ruivinha sem bacon Mary Jane Watson.
Devo dizer, sem qualquer vergonha, que nunca fui dos maiores fãs da moça. Mesmo depois do casamento com Peter e da reformulação sofrida nas mãos de Todd McFarlane, que a tornou uma modelo/atriz mais sensual e independente. Nunca achei que eles combinassem tanto assim e ainda preferia vê-lo ao lado da Betty Brant (coisa de fã pentelho, eu sei). Mas, no fim das contas, me acostumei com a situação. E até gostei dela. Afinal, eu estava crescendo. Eu mesmo me casei. Gostava de enxergar um pouco do meu próprio amadurecimento nas histórias do meu personagem preferido. Eram novas oportunidades desafiadoras para que os roteiristas trabalhassem novas facetas de um herói criado nos longínquos anos 60, correto? E se eu quisesse um Aranha à moda antiga, ainda adolescente, podia muito bem recorrer ao ótimo trabalho de Brian Michael Bendis em Ultimate Spider-Man, certo? Não, meu camarada, parece que as coisas não funcionam assim no universo dos quadrinhos de super-heróis.
Tentando modernizar e, ao mesmo tempo, manter aquele espírito juvenil do herói em seus tempos de escola – com a justificativa de que alguns leitores começaram a se incomodar com o tom mais adulto que o lado humano de suas aventuras vinham ganhando, ao mesmo tempo em que a molecadinha começou a se interessar pela franquia graças ao sucesso cinematográfico – a chamada Casa das Idéias submeteu o aracnídeo favorito dos gibis a uma interminável série de arcos de história pretensamente revolucionários e que, no entanto, não duraram absolutamente nada, sendo devidamente esquecidos “magicamente”, assim como suas revoluções passageiras, conforme outros escritores iam chegando para assumir o cargo. E vieram assim Crise de Identidade, Gênese (de John Byrne), Os Poderes Totêmicos, Gwen Stacy Vadia Dando Para Norman E Tendo Gêmeos Superpoderosos, O Outro, e, é claro, a lendária Saga do Clone.
São todas histórias idiotas, conceitos boçais, ambientações cretinas? Sem dúvida! Mas são coisas que aconteceram. Ponto. Livrar-se delas todas na cronologia usando um demônio vermelho e seu passe de mágica é ridículo. Insultante. E meia-boca total. Trabalho de roteirista preguiçoso. É dizer “não vou lidar com as idiotices que fiz, então vou simplesmente fingir que elas nunca aconteceram”.
Essencialmente, eu tenho dois importantes problemas conceituais com esta história toda de Brand New Day. O primeiro deles é justamente a escolha de Mefisto como catalisador de todo o processo. Por que justamente ele? Por que um personagem que a própria Marvel não decide de fato se é ou não a representação do Diabo (Lúcifer, Belzebu, Satanás, capeta, cramulhão, coisa-ruim, pé-preto, pé-de-bode e qualquer outra denominação que você queira incluir aqui), com poderes suficientes para modificar e alterar tão substancialmente tempo e espaço?
Já sou radicalmente contra a inclusão deste tipo de elemento místico/mágico nas histórias do Aranha, que nasceu como um herói urbano, sem combates espaciais, extracorpóreos, mágicos. Apenas aquele bando de vilões pseudocientíficos em uniformes coloridos e ridículos. E tava mais do que bão. Mas se era para optar por uma saída cretina como esta, tão fácil e óbvia, que fosse utilizando um personagem como o Loki. Ele é o deus viking da mentira, tão forçado quanto, mas pelo menos teve mais contato com o Aranha do que o próprio Mefisto, um bad guy ultrapassado e apanhado absolutamente ao acaso no meio da galeria de vilões Marvel sem nenhuma relação com Parker e sua trupe. Por quê, Quesada? Por quê?
Minha segunda ressalva é: o que vai acontecer daqui para frente? Assim como na famigerada Saga do Clone, a idéia aqui era reiniciar, recomeçar, tirando Peter e MJ de cena e colocando, como protagonista, um Ben Reilly solteiro, quase moleque, tentando retornar minimamente ao conceito anterior da série. O objetivo podia ser até dos mais louváveis, mas a forma como ele foi atingido chegou parte do risível. Os fãs reclamaram, pediram o casal-aranha de volta e, sim, tudo voltou à estaca-zero.
O mesmo acontece com Brand New Day. Além dos óbvios problemas de continuidade que se tem ao jogar duas décadas de cronologia pelo ralo – os escritores terão que bater cabeça para decidir se cada um dos pequenos fatos da vida de Peter ou mesmo de sua relação com o universo Marvel foram ou não modificados pelo estalar de dedos do Mefisto – tenho medo da rejeição do público a este Peter e seus novos casos amorosos e de ter que ver a Marvel mudar tudo de novo, retornando ao casamento com a ruiva como se nada tivesse acontecido. Nada, nada, nada! Vejamos: a saída macarrônica para se chegar a este ponto, com Peter de volta à casa da Tia May e de volta ao Clarim como fotógrafo, foi terrível. Mas temos que conviver com ela, vamos seguir em frente. Nada de dizer que foi tudo um sonho e/ou uma manipulação da realidade feita por um Norman Osborn de posse do cubo cósmico.
Assim como achei Joe Quesada covarde por não saber lidar com suas próprias escolhas ao permitir a revelação da identidade secreta do Escalador de Paredes durante “Guerra Civil” e também por não encontrar uma forma digna e justa de dar ao fim ao casamento dos pombinhos de oito patas, preferindo uma saída “mágica”, eu o acharia infinitamente mais bundão se, depois de alguns meses, ele viesse com um retorno às páginas anteriores, mostrando que foi tudo passageiro e “modificável”. Depois de tanta polêmica, de tanta discussão, com direito a farpas trocadas publicamente até com o escritor J.Michael Strakhcvjhgvsfhfgegfdgfeki. Insultou a minha inteligência da primeira vez? Insultaria muito mais com uma fuga pela esquerda à Leão da Montanha. Fez a cagada? Siga em frente com ela. E vejamos onde vai dar. Fugir depois é muito mais feio. Seja homem, Quesada!
Pois é, caro marvete. E você ainda ficou aí, todo prosa, rindo daquele estúpido Superboy Prime socando as realidades e modificando tudo que aconteceu nos últimos anos de histórias da DC Comics, numa solução assombrosamente ridícula. Agora são os DCnautas que estão gargalhando de você. Um dia é da caça, o outro é do caçador. Aguardem os próximos capítulos.