O Ministério Delfiano adverte: se você é amante de games e não foi ao Video Games Live, esse texto poderá (e irá) deixá-lo com muita raiva de si mesmo. Talvez até do mundo todo. Porque, sendo bem sincero e sem rodeios… quem não foi, perdeu. E como perdeu.
Bom, como tem muita gente por aí que deve estar até agora se perguntando o que diabos é um Video Games Live, eu vou explicar: é um espetáculo de música sinfônica (sim, aquela de adultos, que você ouve sentado e ninguém bate cabeça), onde uma orquestra completa toca apenas e exclusivamente trilhas sonoras de videogames. Se você estiver se perguntando algo parecido com “mas precisa de uma orquestra sinfônica para tocar aquele monte de barulhinho irritante que sai do videogame do meu filho?”, pode parar de ler esse texto agora. Vá lá jogar videogame com o seu filho para falar coisas com mais embasamento.
Antes de falar do espetáculo em si, deixe-me contar um pouco sobre o projeto Video Games Live. Ainda que a parte sonora seja a estrela da festa, o VGL não dispensa o impacto visual. Um telão posicionado atrás da orquestra mostra imagens dos games cuja trilha sonora está sendo executada. No caso do Via Funchal, havia mais dois telões de apoio, que eram “da casa” (e que, na maior parte do tempo, mostravam imagens dos músicos e não dos games, impossibilitando que todos os que estivessem na platéia lateral curtissem o espetáculo devidamente, já que o central ficava quase impossível de se ver). Um canhão de lasers também faz parte do espetáculo, dando todo um ar de sofisticação e tecnologia que um evento direcionado a gamers tem que ter. Se bem que ele começa a ficar seriamente irritante depois de um tempo, ainda mais se você não estiver bem perto do palco.
O show foi criado e é apresentado pelo compositor e músico Tommy Tallarico, que já trabalhou na trilha sonora de vários jogos clássicos e tremendões, como Earthworm Jim, MDK e Metroid Prime (curiosidade: Tommy é primo do Steven Tyler, o vocalista do Aerosmith, cujo sobrenome real é Tallarico), enquanto a batuta ficou com o maestro Jack Wall, que também já trabalhou em jogos da pesada, como Myst e Splinter Cell.
Mas chega de papo furado e vamos ao que interessa: o show. Pouco antes das oito horas (ou seja, com quase meia hora de atraso), o maestro Wall entra no palco, tropeçando em alguma coisa e aproveitando a ocasião para rir de si mesmo e encorajar a platéia a rir também. Esse bom humor seria a tônica da noite: o que estava ali no palco era um maestro e uma orquestra, mas quem estava na platéia era um (enorme) bando de nerds, metaleiros, roqueiros, indies, emos e toda sorte de pessoa que não necessariamente está acostumada a “se comportar” em uma casa de espetáculos musicais. Mas Mr. Wall e Mr. Tallarico conhecem seu público e fizeram questão de deixar claro: “Gritem o quanto quiser! Essa noite nós vamos mostrar que os fãs de videogame de São Paulo são tão fãs quanto os de qualquer parte do mundo!” Ok, sir. Então a gente vai gritar, e vai gritar bastante.
Eu, pessoalmente, esperava que o show começasse de uma maneira apoteótica, com todos os instrumentos tocando juntos uma mesma nota, longa e aguda, enquanto o telão se iluminasse e o canhão de laser se ativasse na potência máxima. Logo, fiquei surpreso (mas não decepcionado) quando o primeiro som emitido foi um singelo e discreto “póim” (como é difícil descrever sons primitivos!) enquanto Pong (o primeiro jogo de videogame da história) aparecia no telão. E o jogo rolava, enquanto a Orquestra Sinfônica Jovem da Unicamp emitia os sonzinhos, que foram ficando cada vez mais rápidos, até se transformarem em outro jogo, e outro e outro… e quando voltamos à sã consciência, tinha acabado o primeiro medley da noite: o dos jogos clássicos. Como eu não sou tão old-school assim, reconheci muito pouca coisa daquilo, fora os clássicos Pong, Asteroids, Frogger, Donkey Kong, OutRun, Dragon’s Lair e Tetris. Mas foi arrepiante mesmo assim. Quando eu parei para pensar que há poucos anos isso era considerado brinquedo de criança, moda passageira, e agora temos uma orquestra sinfônica e todo um espetáculo cultural ao redor dos games, fiquei mais arrepiado ainda. E pelo jeito eu não era o único a pensar assim, pois toda e qualquer mão daquelas quase 5000 pessoas estava indo de encontro à sua colega (a outra mão), resultando em aplausos que o pessoal da orquestra provavelmente não está acostumado a receber.
Depois dessa introdução, quando a galera já estava no pique, Tallarico vem ao palco, se apresenta, faz discurso e conquista a platéia. O cara é um showman de primeira, super carismático e divertido. E fala um inglês bem claro e bem pronunciado, o que ajudou a galera a entender tudo e vibrar ainda mais. Então ele apontou para o telão, que mostrava ninguém menos que Hideo Kojima, o criador da fodoníssima série Metal Gear Solid, falando um “engrish” bem mal-arranjado para apresentar o próximo número, que ninguém precisou adivinhar qual era.
Eu, pessoalmente, não acompanho a série Metal Gear Solid (só terminei o primeiro), mas essa foi uma das partes que eu mais gostei. A gente não percebe quão boa uma trilha sonora é até que venha uma orquestra inteira tocar ela na nossa cara. Lá pela metade da execução dos temas da série, aparecem no palco um Genome Soldier (inimigo corriqueiro nos jogos) e uma caixa (disfarce tradicional do protagonista) no palco. (Curiosidade: pra quem conhece, a pessoa por baixo da roupa de soldado era Gilsomar Livramento, um dos colaboradores e principal redator de detonados das revistas de games da Futuro Comunicação) O soldado se movimenta calmamente e a caixa permanece parada, até que, no momento certo, tudo acontece ao mesmo tempo: a orquestra faz o barulho característico de “fui visto, preciso me esconder” que rola no jogo, a caixa se move lentamente e o soldado puxa uma cordinha do seu ombro. Pra quê a cordinha? Porque ela aciona uma exclamação luminosa que fica pairando sobre a cabeça do soldado, ilustrando um momento característico dos games da série. A galera foi ao delírio total nessa parte.
O espetáculo seguiu com uma apresentação da trilha sonora da série Castlevania, da qual também não sou fã. Os arranjos não estavam tão bons quanto os de Metal Gear, e as próprias composições não me agradam tanto assim, de modo que me diverti, mas não vibrei nem nada.
Depois disso, olho no telão mais uma vez e agora quem aparece é David Jaffe, um dos “novatos” que mais faz barulho na indústria dos games atualmente. Sua maior criação? God of War, o sangrento épico de mitologia grega do PS2. Foi a vez das vozes do coral, já que a visceral trilha sonora de GoW é composta de muitas partes vocais, tal qual um bom épico deve ser. Eu acho o jogo tremendão, mas a trilha sonora não me chamou atenção, nem no game, nem no espetáculo. Talvez eu ainda estivesse extasiado pelo número do Metal Gear.
Após o término desse número, o holofote ilumina novamente a caixa, que ninguém mais se lembrava que estava lá e eis que sai de dentro dela o próprio apresentador, Tommy Tallarico, para surpresa e estupefação do público presente. Será mesmo possível que ele ficou ali dentro, paradinho, durante três músicas? Quem participou da organização me garante que sim, mas tudo que eu sei é que foi divertido vê-lo saindo da caixa e dizendo “Bem, alguém tinha que fazer isso”, e depois “Mentira… é que eu era o único que cabia aqui dentro”. Tallarico é, por assim dizer, um nanico.
Além dos números normais, também rolaram os chamados “segmentos interativos”, onde eles chamam pessoas para jogar um game no telão, enquanto a orquestra toca a música de acordo com as ações da pessoa no jogo. No primeiro desses segmentos, que aconteceu neste momento, um garoto subiu ao palco e jogou Space Invaders. A melhor parte era que o próprio garoto teve que “interpretar” a nave, se movendo de um lado para o outro, enquanto apertava um botão para atirar. A platéia vibrava e torcia muito alto, mas (talvez até por isso mesmo) o pobre garoto não conseguiu se coordenar e acabou falhando miseravelmente em sua missão de salvar a terra dos aliens pixelados.
Os próximos números foram em homenagem a Civilization IV e Tomb Raider. O primeiro, apesar de não muito popular como jogo, arrancou muitos aplausos pela trilha sonora e pelas belíssimas imagens no telão, que mostrava animações de grandes marcos arquitetônicos da humanidade sendo construídos, desde as pirâmides do Egito até a Torre Eiffel, passando pelos templos Incas e terminando no letreiro de Hollywood. Já com o segundo, foi o contrário: quando o nome Tomb Raider apareceu no telão, no início do número, todo mundo aplaudiu e gritou. No entanto, depois que a música começou, tudo que se ouviu foram dois ou três assovios safados quando a moçoila Lara Croft apareceu no telão usando o super-decotado vestido de noite que ela usa em um trecho de seu último game, o Tomb Raider: Legend.
Mas eu já estava sentindo falta de Nintendo. Cadê Mario, Metroid e Zelda, pô? Foi aí que apareceu a imagem do japa Koji Kondo no telão (falando um “engrish” muitíssimo mais mal-arranjado do que o do até então insuperável Hideo Kojima), eu já sabia que seria atendido em uma ou duas dessas três requisições, afinal, o cara era o compositor de Zelda e Mario. E cinco segundos depois, eu estava de pé aplaudindo o simples fato da frase The Legend of Zelda estar aparecendo no telão. Mas eu não me senti bobo ao fazer isso, porque 80% da casa estava fazendo, instintivamente, a mesma coisa. É aí que você vê o quanto Zelda é um nome de peso entre os jogadores. O barulho rivalizou com a apresentação de Metal Gear Solid, mas deu pra ver claramente que a emoção era maior. As pessoas acham Metal Gear muito bom, mas Zelda cresceu com a maioria daqueles que estavam aplaudindo, incluindo este escritor. Pena que o arranjo deles não estava 100% perfeito (eu, pessoalmente, achei que mal lembrava a versão original), senão a casa teria vindo abaixo. Ainda mais com a belíssima seleção de cenas que eles usaram, com trechos de praticamente todos os Zeldas já lançados, inclusive do novíssimo Twilight Princess.
Assim como a casa quase veio abaixo no número seguinte. Quando Tallarico perguntou “Have you heard about… Square?”, a galera vibrou. Quando ele continuou, perguntando “Have you heard about… Nobuo Uematsu?”, a comoção foi geral. Parecia que o cara tava falando, sei lá, do Elvis ou dos Beatles, tamanho barulho. Quando ele anunciou Liberi Fatali!, a música de abertura do Final Fantasy VIII deve ter gente que chorou. Realmente, a música foi muito bonita, cantada em latim e tudo, mas eu nunca joguei o VIII, então não me emocionei. O único ponto fraco foi o fato dela não ter sido acompanhada de imagens, já que a Square-Enix não libera a exibição delas. E assim, curiosamente semelhante ao gran finale, termina o ato um.
Depois de um intervalo de 20 minutos, durante os quais uma autêntica barra de “Loading” ficou carregando no telão, veríamos o ato dois começar com mais um segmento interativo. Em comemoração aos 25 anos da série Frogger (que há 24 anos só faz lixo), Tallarico chamou ao palco duas pessoas, um cara “cosplayado” e uma menina aparentemente meio hippie, para jogar o Frogger original, de 25 anos atrás. A galera estava claramente torcendo (e muito) para a menina, mas quem ganhou (por pouco!) foi o cara. O sortudo levou um notebook de “twenty-five-hundred-dollars” nas empolgadas palavras do apresentador ou 2500 doletas para os brasileiros.
A seguir, mais um número prejudicado pela maldita restrição da Square-Enix em liberar imagens dos seus jogos para o espetáculo. Eu não joguei Final Fantasy VIII, então não posso dizer muito sobre como eu me sentiria se a música tivesse sido acompanhada de imagens. Mas eu joguei Kingdom Hearts e eu sei que, se a inacreditavelmente bonita canção-tema Passion tivesse sido executada com as imagens certas ao fundo, eu teria saído correndo e chorando que nem um emo recentemente atingido por uma garrafada no meio de um show. Sério, de certo modo eu gostei da canção não ter sido acompanhada pelas imagens do jogo (colocaram no lugar imagens de vários desenhos da Disney), mas não paro de imaginar como teria sido se tivesse. Só sei que a música foi interpretada de maneira simplesmente perfeita e magnífica. Um dos meus momentos favoritos da noite, sem dúvida.
O momento seguinte foi quase tão bom. Mais um medley, dessa vez só com músicas clássicas do Sonic. Foi inacreditável! Os caras tocaram praticamente todas as melhores músicas dos jogos antigos do ouriço, cada uma com as respectivas imagens apropriadas passando no telão. Outro momento grandioso e inesquecível para a memória desse gamer.
Depois de um número só com músicas do World of Warcraft, no qual eu quase dormi, mas tenho certeza que muita gente curtiu, veio um momento REALMENTE inesquecível. Procure por Martin Leung (ou video game pianist) no YouTube. Assista qualquer coisa dele. Agora imagine o que deve ter sido esse japonês INSANO tocando uma seqüência das melhores composições de toda a série Final Fantasy (quase todas bem melhores que a Liberi Fatali, na minha opinião). Foi insano, cara, completamente insano. Um japonês que parece que tem um cérebro em cada dedo tocando músicas de uma série que é conhecida justamente por ter algumas das músicas mais bonitas da história dos games. Não sei se preciso dizer mais alguma coisa. Quando ele terminou, foi o primeiro momento em que todos se levantaram pra aplaudir. Todos.
E você já ouviu falar do game Advent Rising? Pois é, eu também não. Mas esse game, aparentemente, foi um dos que Tallarico mais trabalhou na trilha (ele disse que foram três anos), portanto ele tem um carinho especial por essas músicas. Isso significa que essa foi uma das apresentações mais bem cuidadas, bem acertadas e com a melhor conjunção entre imagem e som (sem contar o laser, que era bonito no começo, mas a essa altura já estava ficando irritante e desnecessário). Mas não faz mal, afinal, a música era realmente muito boa. Mesmo sem nunca ter sequer ouvido falar desse game, eu aproveitei esse número mais do que alguns de jogos famosos, como Tomb Raider.
E sabe quem voltou a aparecer no telão depois disso? Koji Kondo! Claro, o cara é compositor de duas séries que não poderiam ficar de fora do show, e uma delas já foi, então… é hora de Mario! Eu não sei se é por conta da alta expectativa ou se foi falha (ou quem sabe falta de talento?) dos músicos, ou talvez até mesmo uma inadequação da trilha ao formato de orquestra… eu só sei que ao fim da música pensei: “Uau. Que legal.” Mas não foi aquele “que tremendão!” de outros momentos, como o do Metal Gear ou o do Kingdom Hearts ou até mesmo o do Sonic. Foi uma boa apresentação, bem conduzida e com boas cenas no telão, uma boa homenagem ao personagem mais influente da história dos games, mas não me tocou tão forte quanto outras na mesma noite.
Pelo menos não até a re-entrada de Martin Leung, para a execução do número que o tornou mundialmente famoso: a execução dos temas do game com os olhos vendados! O cara é tão animal, mas tão animal, que antes mesmo dele se sentar para tocar, já tinha gente de pé aplaudindo. E olha que essa nem seria a melhor apresentação dele na noite. Mas que foi maravilhoso, foi.
O cara tocou sim a música do Mario com os olhos vendados. Mas foi só uma música, ao contrário do vídeo na internet, onde ele fica uns 10 minutos tocando várias músicas da série sem olhar nada. Ele logo tirou a venda, para continuar a tocar Mario. Mas, no final, ao invés deste game, ele tocou aquela música russa que é trilha sonora do Tetris, do NES. Mas aquele cara tocou essa música numa velocidade tão mastodonticamente absurda que eu vi gente questionando se ele não tinha alguma espécie de problema (ou poder) mental. De verdade. Foi simplesmente inacreditável.
O que veio depois foi bem original, apesar de não me empolgar nem um pouco (é eu sou difícil de agradar): os caras colocaram no telão o trailer do Halo 3, o mesmo que foi exibido na E3, em maio, executando a música e com uma narradora falando em português. Foi bem bacana, intenso e tal, e eu até gostei de ouvir a mocinha falando “É assim que o mundo acaba” exatamente como no trailer que eu já tinha visto, mas simplesmente eu acho Halo o jogo mais sem personalidade e carisma do mundo. Mas o número foi bacaninha, sim.
Pra terminar (aaahhh!), Tallarico no palco, com camiseta da seleção brasileira (gesto, por sinal, que não rendeu muita comoção), e falou algumas coisas, antes de apresentar o próximo número. Falou, por exemplo, que vai voltar ao Brasil todos os anos da turnê do VGL. Ou seja, se você perdeu, comece já a guardar grana pro próximo. Mas e qual seria o número de encerramento?
O nome da música tem três palavras. A primeira, ele falou sozinho (One); a segunda, algumas pessoas acompanharam (Winged); a terceira (ANGEL) quase derrubou o teto do lugar, tamanho o volume do grito em conjunto. E assim, a orquestra deu o maior show da noite. A canção-tema daquele que muitos consideram o maior vilão da história dos games (Sephiroth, de Final Fantasy VII, seu desinformado) foi o combustível para a maior explosão musical da noite. Cantada em latim e acompanhada em coro pela multidão (quem não acompanhou, assobiou e gritou), o épico serviu para estampar e gravar algumas coisas na memória de todos que estavam lá: videogame é sério. Videogame é arte. Videogame tem mercado e fãs ardorosos. Videogame não é mais coisa de criança há MUITO tempo. E, não importa quanto você tenha pago pelo seu ingresso, foi uma das quantias mais bem gastas da sua vida.