A regra é muito simples: uma biografia só é legal quando o personagem em questão tem uma boa história para contar. Por que eu não tenho curiosidade em ler a tão falada (mais pelos bastidores do que pelo texto) biografia não autorizada do Roberto Carlos? Porque acredito plenamente que ele não tem nada de interessante para me contar. Sem dúvida, o “rei” deve ter passado por experiências intrigantes, mas você imagina a vida do Robertão com polêmicas, sexo, drogas e Rock ´n´ Roll? Nem eu!
Em compensação, o Mötley Crüe é o grupo que melhor representa o estereótipo das bandas de Rock e Heavy Metal. Lembra aquilo mostrado de maneira bizarra no filme Rockstar que supostamente retrataria um período da vida do Judas Priest, com festas regadas a drogas, imposições da gravadora e muita falsidade? A diferença é que os ingleses se ofenderam com o que foi mostrado, já os estadunidenses levaram esse mito ao extremo e não estão nem aí em dividir suas experiências com os curiosos de plantão.
Se você pensa que a biografia, por ser oficial, “suaviza” os aspectos mais obscuros e podres, se prepare para uma surpresa: ela enfatiza essas características. E sabe o que é pior? Você acaba se identificando com todo o lixo que os caras vivem porque faria exatamente o mesmo se fosse milionário aos 20 e poucos anos de idade. Isso sim é o mais chocante: Nikki Sixx poderia muito bem ser eu ou você.
The Dirt (“A Sujeira”, em uma tradução livre) não foi um nome escolhido à toa. Ele retrata exatamente o lado mais perverso e corrupto da cena musical, o que inclui seus abusos e manipulações.
Todos os capítulos são escritos em primeira pessoa por um integrante da banda (ou alguém próximo a eles), contando sua história e seu ponto de vista sobre uma determinada situação. Isso é bem legal porque, em vários momentos, temos opiniões diferentes sobre um mesmo fato.
O Mötley Crüe sempre aparece em segundo plano e fica claro que esta é a biografia dos integrantes de uma banda e não do grupo em si. As transas, o uso de drogas e as brigas ganham destaque à medida que o sucesso vai chegando. Lógico que o livro também traz momentos bem humorados, como o encontro da banda com Ozzy Osbourne (que no fundo é triste, mas tire suas próprias conclusões) ou com o Iron Maiden durante uma turnê européia.
Para refletir o futuro, nada melhor do que uma bela olhada no passado e é exatamente isso que cada integrante da banda faz: contar detalhadamente desde a infância até o encontro com os outros membros encaixando todas as peças do quebra-cabeça. A infância difícil de Nikki Sixx, quando o cara mandou sua própria mãe pra cadeia, a paternidade precoce de Mick Mars (que bem antes de ingressar no Mötley já era cheio de filhos), as tragédias que acompanharam Vince Neil, tudo é escancarado, sem censura, para que possamos entender como eles chegaram ao topo.
A odisséia humana ganha certa lógica quando analisamos cada história individualmente e conseguimos entender as personalidades: Nikki Sixx escolheu conscientemente viver sem limites porque sabia que mais cedo ou mais tarde morreria mesmo. Tommy Lee é o moleque que pode transar com sua própria irmã. Vince Neil é o barril de pólvora perturbado por sucessivas mortes de pessoas próximas. E Mick Mars é o cara maduro que tenta trazer algum equilíbrio à banda.
Fatos terríveis como a morte do baterista do Hanoi Rocks, Nicolas “Razzle” Dingley, no acidente de automóvel conduzido por Vince Neil, a “morte” de Nikki Sixx após uma overdose (e não a primeira) ou a prisão de Tommy Lee depois de bater em Pamela Anderson, são contados de diversos ângulos e deixam a conclusão final a cargo do leitor.
O único defeito é uma falta de profundidade na história das músicas em si. Mesmo que muitas fontes de inspiração sejam óbvias ao longo da leitura, alguns dos clássicos do Hard Rock aparecem como coadjuvantes em meio ao abuso de drogas, sexo e imprudência, o que na verdade não é exatamente um equívoco, afinal – conforme já mencionei – essa é a biografia dos integrantes e não da banda em si.
Outro fator que pode fazer os fãs reclamarem é que a narrativa vai até meados de 2002, quando Tommy Lee saiu abruptamente do grupo. Ok, estamos em 2007, o cara voltou e o Mötley já fez uma turnê com a formação original para a ótima coletânea Red, White & Crüe, mas o final do livro é tão perfeito, tão sensível, sobretudo perto de toda a grosseria que você acabou de ler, que honestamente se o autor tentar mexer em alguma coisa, estraga.
The Dirt é a melhor biografia oficial de uma banda. Um tapa na cara do conservadorismo, uma aula de hipocrisia e cinismo da sociedade moderna e o meu livro de cabeceira de todos os tempos.