No final de dezembro, a Editora Abril me enviou as primeiras edições das séries que venceram o Prêmio Abril de Personagens. Lembra dele? Em 2010, a Abril abriu (ok, eu quis fazer isso!) um concurso para achar quadrinhos infantis de qualidade, desde que inéditos. Você tinha que criar alguns personagens e fazer histórias com eles de acordo com um esquema de fases do concurso.
Durante o desenvolvimento do mesmo, não ficamos sabendo muito de como a coisa toda foi indo (ou eu que não me liguei mesmo) e vi até alguns amigos perguntando como terminou a coisa toda. Não havia divulgação de resultado, não vimos estardalhaço (como foi quando anunciaram o concurso) e, quando fui verificar, eles estavam para lançar as três séries resenhadas aqui. Fica registrada a eterna gratidão pelo envio das revistas.
ESCOLHA DA EDIÇÃO
Antes da parte criativa, quero falar um pouco da edição de cada revista. O gênero é infantil e estão claramente concorrendo com as publicações do Maurício de Sousa. Como sempre é um fator importante, vamos logo para o preço. Ao pegar um Chico Bento da minha filha, a revista contém 64 páginas (estou excluindo as capas da contagem) de puro entretenimento a R$ 3,20. Dividindo por páginas, você paga R$ 0,20 por página. As novas publicações da Abril possuem 32 páginas de entretenimento por R$ 1,95. Fazendo o mesmo cálculo (deu quebrado), dá R$ 0,16 por página.
Não que a Abril tenha que copiar o esquema de edição do Maurício, mas ao pegar as revistas, você as sente tão finas, tão leves. A minha primeira impressão foi a de que tinha muito pouco conteúdo, que seria realmente uma leitura muito rápida e superficial. Depois de um tempo, essa impressão passou. Ainda assim, fiquei querendo mais, com vontade que tivesse mais páginas. Talvez mais histórias ajudassem a fixar mais os personagens e seus respectivos mundos na cabeça da criançada.
ESTILO DE TRAÇO
Cada traço reflete seu tempo. Ao pegar as animações de Hanna-Barbera e outros estúdios na época que transmitiam Johnny Quest ou Corrida Maluca, havia uma determinada visão relacionada ao tipo e estilo, por exemplo. Então quando Maurício de Sousa criou sua turminha, bebia de diversas fontes diferentes que poderíamos ficar horas, talvez dias especulando.
E o padrão nos dias de hoje é o Cartoon Network. Eles criaram um padrão que não existia para design de personagens, movimentação e tudo mais. Isso acabou influenciando os criadores atuais de qualquer coisa que tenha a ver com personagens infantis. Isso é o que acontece nas três revistas, com mais força ainda no caso de Gemini 8 e Garoto Vivo.
Ao bater o olho, a arte das três é linda, cativante e atual. Talvez o único defeito – e digo talvez porque é uma questão de gosto pessoal – esteja com Garoto Vivo. Como tem uma temática um pouco sombria, algo voltado para o “terrir”, em alguns momentos a coloração está escura demais. Acredito que suavizando um tiquinho, melhore bastante sem tirar a intenção de passar o clima certo das histórias. Ou seja, nada que não possa ser consertado, não sendo motivo para não comprar ou algo assim. Fica aqui registrada apenas uma dica, pois evoluir é um processo natural. Então vamos às resenhas individuais:
GEMINI 8 – O GAROTO QUE SE PERDEU EM OUTRO PLANETA
Das três séries, é a que mais grita “me torne um desenho animado!” e também “faça produtos comigo!”, tamanha a identidade visual que tem com o Cartoon Network. Isso é bom, muito bom. Afinal, propriedades intelectuais devem também ser exploradas comercialmente. Digo “também” porque não podemos nos esquecer da qualidade do produto original, a HQ, cuja função é cativar para ter fãs, e assim fazer com que os produtos relacionados vendam bem.
A maneira como Marco, o menino terrestre, vai parar em Gemini 8 é meio forçada. Ok, é infantil, as coisas são forçadas, mas não sei dizer o que é exatamente que me fez ter uma sensação de “WTF”? Provavelmente seja só encanação de um adulto e para as crianças fique tudo ok. Aliás, escrevendo agora, tenha a sensação de que faltou alguma explicação – mesmo que bizarra, afinal, é uma HQ infantil e tudo pode acontecer – para como rolou a coisa. O que acontece é que ele tentou pegar uma pipa e, de repente, estava em Gemini 8. Simples assim.
A história segue com Marco conhecendo o planeta com a ajuda de Polo, um menino alienígena que é igualzinho um terrestre. Aliás, isso me incomodou, pois afinal, tirando umas pirações normais que rolam em um planeta alienígena dentro de uma história infantil, tudo no planeta é igual ao nosso. Há escolas e tudo mais. Só o Ned, um dos alienígenas, é que parece diferente de nós.
Aprofundando essas similaridades, em um dado momento, Polo pergunta a Ned se ele espirrou. Em outro momento, Polo pega um lança-mísseis, daqueles com olhos agressivos e dentes serrilhados pintados na ponta dos projetéis. E a lista de similaridades vai aumentando. Acho que os autores perderam uma oportunidade ímpar de pirar nas diferenças entre as culturas e sociedades, de modo que haveria uma maior variedade de plots a ser desenvolvidos, gerando mais possibilidades.
A impressão que me deu é que a série foi escolhida apenas pelo visual, devido ao desenvolvimento raso de personagens na parte psicológica. Aí você diz: “Pô, cara, é uma HQ infantil, não tem que ter profundidade!”. Não poderia discordar mais. Up – Altas Aventuras é também infantil e aqueles 10 minutos iniciais emocionam qualquer coração de gelo. Mas aí você diz “Pô, cara, é uma animação”. Ok, então pegando o Cascão, só o fato de ele odiar água já gera possibilidades infinitas. Não é à toa que o personagem está aí há 50 anos entretendo crianças e adultos. O que quero dizer é que os personagens precisam de mais. Precisam de características mais marcantes que não sejam apenas visuais.
Outra coisa é que o mote do menino terrestre perdido em um planeta alienígena parece raso neste caso. Digo isso porque Polo fica o tempo inteiro tentando mandar Marco de volta para a Terra. Aí fica aquela coisa: será que a série vai insistir nesse mote à Caverna do Dragão? Claro, poderia, seria legal, mas me gera dúvidas porque rola uma apresentação da família de Marco no começo da revista. Talvez mantenham isso ou talvez façam Polo visitar o amigo na Terra, não sei. Vamos ver no que vai dar.
Porém, o maior pecado de Gemini 8 é ter continuação. Sim, a história não acaba, você tem que comprar a revista do mês seguinte para ver como acaba. E levando em consideração que são 32 páginas de história e está inacabada, não tem desculpa para não desenvolver bem os personagens. E continuação não é legal para HQs infantis.
Vale a compra? Apesar dos defeitos, vale. A razão, infelizmente, não é o nível de qualidade da obra e sim o fato de que é uma empreitada que está começando. Dá para melhorar, contornar os aspectos sanados aqui e fazer cada vez melhor. Não é porque não começou exatamente bem que você não vai passar na banca e comprar para seu filho, sobrinho ou para si mesmo. Na verdade, tenho que dar os parabéns para a Abril de ter essa iniciativa e espero mesmo que Gemini 8 melhore a cada edição, pois potencial pra isso a série e seus personagens têm e muito.
Nota: 2,5
GAROTO VIVO – O MENINO AMIGO DOS ZUMBIS E OUTROS MONSTROS
Ao contrário da série anterior, Garoto Vivo tem duas histórias completas. Só faço duas ressalvas a esta revista. A primeira é a de que falta um algo a mais, uma mensagem para a criança. É obrigatório? Talvez na sua cabeça de nerd que só quer se divertir – e na da criançada – não. E você está coberto de razão.
Mas também estão certos o pai e a mãe que querem que, ao fazer uma atividade recreativa, como ler uma HQ, o seu pimpolho esteja sendo bem educado, aprendendo algo, acrescentando algum valor. Como pai/mãe, é natural que você se preocupe com o desenvolvimento de seu filho. E não adianta, na cabeça dos responsáveis por uma criança, isso rola e é fato. Aliás, isso aconteceu nas três HQs, não só nessa. E se discorda desse ponto, taí o Maurício de Sousa, que é o argumento mais forte, pois sempre tem algum pai ou educador que bate na tecla de que o Cebolinha fala “elado” e que é uma má influência.
A segunda é uma falta de criatividade em uma abordagem: a de tudo aquilo que é grotesco e nojento é legal e certo para os personagens mortos-vivos. Em uma cena, um esqueleto diz a Caio que ele vai adorar a comida deles, que só tem coisa gostosa. E ele ganha em seu prato tripas e demais órgãos humanos. Isso é algo que rolou em A Família Addams e Os Monstros, duas séries antigas. Ou seja, não traz algo novo, fresco.
De resto, Garoto Vivo é uma série bem bacana, com personagens bem desenvolvidos e que promete uma diversão ainda maior se sanados esses dois problemas. É uma série que tem tudo para dar certo, para ser uma nova opção de história infantil para a criançada e dinheirama para os criadores e a editora. E estamos precisando de alguém que faça isso e não seja um senhor de quase 80 anos.
Nota: 3,5
UFFO – UMA FAMÍLIA FORA DE ÓRBITA… E BEM DIVERTIDA
Deixei o melhor para o final. Em 99% do tempo, só tenho elogios para essa série. Meu único problema é o de manutenção de características de personagens. Em uma história – e tem quatro dentro da revista – o personagem Cosmo diz que já está habituado com a culinária terrestre. Em outra história, ele diz que ainda não se acostumou com a comida, que sempre cai mal e fica peidando. É a mesma coisa que apresentar o Cascão odiando tomar banho e em uma outra história colocá-lo feliz da vida numa piscina. Cadê a coerência?
Tirando isso, UFFO é diversão pura e garantida. Série muito bem criada, construída, cativante e tudo mais que uma série infantil precisa ser. Inclui até uns resquícios de mensagem para as crianças, em um grau de intensidade pequeno, mas tem, diferente das duas anteriores. Por isso mesmo é a mais curta das três resenhas. Trabalho muito bem feito e seus criadores estão de parabéns.
O incrível é que é a série que tem menos histórias na edição, veja só:
– Gemini 8 tem apenas uma, inacabada.
– Garoto Vivo tem duas.
– UFFO tem quatro.
E é a série que é mais bem escrita, desenvolvida e simpática. Isso mostra que dá, sim, para o pessoal de Gemini 8 e Garoto Vivo ter um esforço maior em suas séries.
Nota: 5 (e quase leva um selo Delfianos Supremus!)
SALDO GERAL
Muito positivo. Natural que role defeitos e eles não podem ser motivo de cancelamento, cortes ou coisas assim. É preciso ter em mente um planejamento que vá se desenvolvendo aos poucos. Aconselho ao pessoal da Abril que invista pesado no marketing, pois os pais precisam saber que as revistas existem. O dinheiro está com eles e não com as crianças. Notícias em sites de quadrinhos para quem tem o hábito saber da existência delas.
As três séries mostram grandes perspectivas e possibilidades criativas e mercadológicas. Vale a compra tanto para adultos que queiram voltar um pouco à infância e, quem sabe, ser testemunhas do nascimento de algum novo Maurício de Sousa. Desculpe, mas não sou eu, é o mercado, ao lembrar que o Maurício não é imortal e dá um pouco de medo de tentar imaginar o que seria da Turma da Mônica no infeliz dia que o mago das HQs nacionais não estiver mais entre nós.
Aliás, vou até mais longe: compre mais de uma edição de cada e dê para filhos de vizinhos e amigos. Não só para fortalecer o mercado nacional, mas também para ter o retorno das próprias crianças aos quadrinhos. Precisamos saber o que elas acharam, pois são o público principal. Aliás, fica a dica para os delfonautas: todos podem fazer um texto opinativo sobre as HQs nos comentários e contar qual foi a reação das crianças da família depois de ler as séries. A coisa toda não precisa ficar só na minha opinião e seria um ótimo feedback para os criadores das séries.