O ano era 2002. Eu ainda estava na faculdade de cinema. A qual, um belo dia, promoveu uma pré-estréia só para alunos de um filme chamado Cidade de Deus. Ninguém sabia muita informação sobre ele. História, gênero, quem estava no elenco, esse tipo de coisa. Meia hora depois do início da película, viro para o amigo ao meu lado e pergunto se sou só eu ou ele também estava achando aquele um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos. Ele me disse que não era só eu.
O resto é história bem conhecida. O filme foi aclamado por onde passou, foi sucesso de público, suscitou inúmeras discussões sobre a violência e culminou com as inesperadas quatro indicações para o Oscar (fotografia, direção, montagem e roteiro adaptado).
Como resultado desse prestígio, choveram propostas de projetos internacionais para Fernando Meirelles. Depois de descartar até a nova aventura de James Bond, ele escolheu O Jardineiro Fiel por ter um orçamento pequeno para os padrões internacionais (25 milhões de verdinhas). Com orçamento menor, o risco de se perder dinheiro também diminui e isso significa mais controle sobre a produção que diz ele, neste caso foi total. O fato é que ele escolheu muito bem: O Jardineiro Fiel é muito, mas muito bom.
É a história de Justin Quayle (Ralph Fiennes, a voz de Victor Quartermaine em Wallace & Gromit – A Batalha dos Vegetais), um pacato diplomata britânico que mora e trabalha no Quênia (belamente retratado pela fotografia de César Charlone, o mesmo de Cidade de Deus) e tem como hobby a jardinagem (daí o título). O sujeito é sossegado até demais e não se abala nem com os fortes indícios de que sua esposa Tessa (Rachel Weisz, a policial de Constantine) esteja lhe botando um belo par de chifres.
Tessa, por sua vez, é uma ativista envolvida em trabalhos sociais nas zonas miseráveis do país. Certo dia, ela descobre que uma grande companhia farmacêutica está usando a população carente das favelas quenianas como cobaia para um medicamento ainda em fase de testes. Ao tentar denunciar essa grande desumanidade, acaba assassinada.
Calma, delfonauta, eu não estraguei nenhuma surpresa ao revelar o fato acima. Ela morre logo no começo do filme. A partir daí, Justin finalmente toma uma atitude tentando descobrir no que sua mulher trabalhava quando morreu e, posteriormente, tentando terminar a denúncia. Essa narrativa é entrecortada por flashbacks da relação entre ele e a finada, que também revelam detalhes da investigação que ela conduzia.
Tudo isso é conduzido com maestria por Meirelles, que deixa o filme dinâmico e mistura muito bem passado e presente. O cara fez também um belo trabalho de direção de atores. O casal de protagonistas está ótimo. Eles conseguem fazer você torcer por eles num minuto e odiá-los no outro. Principalmente a personagem de Weisz, cheia de ideais nobres, mas que parecem não se estender ao seu próprio marido, dada algumas de suas atitudes.
Ponto também para o roteiro, que construiu personagens que não têm só qualidades, mas também defeitos. E por falar em roteiro, seria muito fácil o filme cair para o lado da vingança de Justin contra aqueles que mataram sua mulher (no melhor estilo Charles Bronson). Ao invés disso, ele assume sua luta por amor, para conhecer um lado seu que ela não lhe mostrava. E é junto com suas descobertas que ficamos sabendo que as aparências podem enganar. Ele não vira um justiceiro impiedoso como acontece em tantos filmes do gênero. O roteiro respeita as personalidades dos personagens. Justin é um funcionário do governo, um burocrata. E é como tal que ele conduz sua jornada. A história prima pelo realismo com que é retratada. São decisões e ações tomadas por pessoas normais.
Portanto, quem espera por uma chuva de balas, como em Cidade de Deus, pode esquecer. Há pouca ação física neste filme. A própria morte de Tessa, só para se ter uma idéia, nem é mostrada.
O que não quer dizer que o filme seja parado. De forma alguma. É impossível desviar os olhos da tela na medida em que Quayle avança em seu objetivo e as maquinações dos poderosos que controlam a situação são mostradas.
Um filme que trata de um tema pesado, mas não deixa de ser uma história de amor. A história e as excelentes atuações se tornam os elementos principais ao invés da técnica. Se isso ainda não for o bastante para levá-lo ao cinema, não se surpreenda se o nome de Fernando Meirelles voltar a aparecer na lista de indicados ao Oscar.