Há algumas semanas, a Comissão de Finanças, mais uma dessas “comissões inexpressivas” como alguns insistem em dizer, aprovou um projeto de lei conhecido como o Estatuto do Nascituro. O projeto tem como objetivo básico atribuir direitos de um ser humano ao feto. Ou seja, um amontoado de células passaria a ser considerado juridicamente um ser humano vivo e consciente com os mesmos direitos que você e eu.
O nascituro, segundo o substitutivo de 2010, é “o ser humano concebido, mas ainda não nascido”, ou seja, a partir do momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo, o sistema jurídico passa a ter mais um cidadão para proteger.
A POLÊMICA
Se o feto passa a ter direito assegurado à vida, como é afirmado no parágrafo 1 do Art. 3, isso significa que o aborto passaria a ser crime até mesmo em situações em que hoje ele é permitido através do Art. 128 do Código Penal, como risco de vida da mãe e estupro.
A simples possibilidade disso acontecer gerou discursos indignados na internet e fora dela. O que pouca gente viu foi que o substitutivo de 2010 faz uma ressalva mencionando as situações apresentadas pelo Art. 128 do Código Penal, “permitindo” ainda o aborto nos casos abrangidos pelo mesmo.
De uma forma geral, este projeto de lei é uma grande pedra no sapato dos direitos humanos da mulher, é inútil e só atrapalha. Além de não melhorar em nada o que já acontece hoje, ele reforça conceitos sem sentido e cria soluções erradas para situações delicadas, como a gravidez causada por estupro.
Uma situação que não faz sentido, por exemplo, é o fato de que a mãe teria que manter uma gravidez de anencéfalo até o fim. O Art. 9 diz que “é vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro, privando-o de qualquer direito, em razão do sexo, da idade (?), da etnia, da origem, de deficiência física ou mental.”, sendo complementado em seguida pelo Art. 10, onde é dito que o nascituro terá direito a tratamentos para prevenir, minimizar ou curar patologias e deficiências.
Ou seja, mesmo sabendo que a deficiência de um anencéfalo é incurável, ele não pode ser “discriminado” e deve ser tratado. Por que, diabos, fazer a mulher sofrer até o fim da gestação sabendo que o bebê sairá morto do seu útero? Tudo isso por que seria assassinato acabar com a existência de algo que sequer chegará a estar vivo?
O NASCITURO DECORRENTE DE ESTUPRO
A cereja do bolo, no entanto, fica a cargo do Art. 13.
“Art. 13. O nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado os seguintes direitos, ressalvados o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro:
I – direito à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da mãe;
II – direito de ser encaminhado à adoção, caso a mãe assim o deseje.
§ 1º Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei.
§ 2º Na hipótese de a mãe vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará com os custos respectivos até que venha a ser identificado e responsabilizado por pensão o genitor ou venha a ser adotada a criança, se assim for da vontade da mãe.”
Analisemos, portanto, com calma. Este artigo encoraja a mulher que sofreu violência sexual a gerar o fruto deste trauma utilizando auxílios por parte do governo. Os autores desta lei, os senhores Luiz Bassuma e Miguel Martini, acreditam que a vítima de um estupro vá optar por lembrar todos os dias o que lhe aconteceu ao ver no espelho sua barriga crescendo, durante nove meses, em troca de auxílio psicológico e assistência pré-natal.
Eles acreditam que os orfanatos do nosso país também são lugares super legais e que a burocracia envolvida na adoção de uma criança não vá influenciar na vida pós-útero do nascituro.
E, se por acaso, a moça não quiser dar a criança para adoção, estes senhores acham por bem que o estuprador seja localizado, não para responder pelo seu crime atrás das grades, mas sim para pagar a pensão de seu filho (?). Isto é doentio! E depois vão querer o quê? Visitas regulares obrigatórias? Briga judicial pela guarda da criança? Pelo olho que falta em Odin, que mulher teria coragem de ter qualquer vínculo com seu agressor?
O estado, por sua vez, teria que arcar com a apelidada Bolsa Estupro, caso o pai não tenha de onde tirar o dinheiro para a pensão. De uma forma ou outra, a mãe seria lembrada todos os meses, até seu filho ter 18 anos, que foi estuprada e recebe dinheiro para “compensar os danos”.
Nada aqui é solucionado. Só vejo um aumento no número de crianças aguardando adoção, outro nos gastos dos cofres públicos, mais um na criminalização de menores de idade e mulheres traumatizadas.
PENSAR NO NASCITURO NÃO É PENSAR NA CRIANÇA
Os autores do projeto de lei se preocuparam tanto com a “vida” do feto, que esqueceram que aquela bolinha de células um dia nasce e se torna uma criança. Será que eles pararam para pensar o quanto deve ser humilhante ser conhecido na escola como a criança que recebe o Bolsa Estupro? Ou como deve ser traumatizante saber que sua mãe foi abusada sexualmente pelo seu pai e que, além de tudo, você ainda é sustentado por este monstro?
Como seria a convivência com uma mãe ferida, que não consegue amar o filho porque vê nele todos os dias o abuso que sofreu? É simples responder essa. Seria um desastre! Uma família desestruturada, uma criança indesejada, uma criação totalmente falha e voilà! Temos um criminoso em potencial saindo do forno.
Ao escrever este projeto de lei, a única coisa na qual não se pensou foi na criança. Pensaram que a mãe tem que “arcar” com as consequências, como se fosse ela a responsável por ficar grávida, seja por estupro, método contraceptivo falho ou descuido no momento do ato. Pensaram também que o estuprador deve literalmente pagar pelo que fez e ser elevado ao status de genitor. Enquanto isso, o feto, aquele montinho de células inconsciente, terá todos os seus direitos garantidos perante a lei.
É tanto absurdo que ri todas as vezes que revisei este texto.
A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
Este projeto de lei é, como já disse, inútil e, ao mesmo tempo, extremamente ofensivo, colocando a mulher na posição de uma máquina de reprodução. Sequer deveríamos estar gastando energia discutindo e votando em algo que, por fins práticos, não melhora nada e só atrapalha. Deveríamos estar discutindo a descriminalização do aborto. Esta sim, com impactos positivos já comprovados em inúmeras pesquisas e apoiada pelo Conselho Federal de Medicina até a 12º semana de gestação.
Minha opinião sobre este assunto é bem simples. A mulher só deve se submeter a um procedimento de aborto em uma ocasião: quando não quer ter o filho. É uma decisão total da mulher, é o seu corpo que está em jogo, sua vida e de mais ninguém.
Obviamente existem casos e casos. Um casal feliz que engravida por acidente, geralmente decide isso em conjunto, afinal eles são um casal. Mas se no final a mulher não quiser ser mãe, acredito ser egoísmo demais querer que ela mantenha uma gravidez indesejada. De qualquer forma, como disse acima, cada caso é um caso, e não cabe a este texto analisar todos eles.
Eu, por exemplo, tive uma criação machista e bastante religiosa, mesmo tendo mudado muito nestes últimos anos e me declarando feminista, não sei se eu abortaria uma gravidez acidental. A chance de eu me sentir responsável pelo feto é muito grande. Mas isto não determina o que todas as mulheres do Brasil pensam e muito menos o que devem obedecer. Parem de legislar sobre os nossos úteros!
Ninguém quer obrigar outras mulheres a abortarem seus fetos, nem incentivar o sexo desprotegido. O que eu quero é ter o direito de escolher sem correr risco de vida.
Muitas mulheres abortam e morrem hoje em clínicas clandestinas. A criminalização do aborto não salva vidas inocentes, ela mata. A lei não impede que os abortos aconteçam e a descriminalização não vai aumentar o número de abortos. Ninguém transa despreocupado achando que depois é “só abortar”, afinal, isso é uma cirurgia de alto risco e, dependendo do estágio da gestação o risco é maior ainda.
Se você pensa que uma mulher merece morrer por abortar, ponha a mão na consciência e coloque-se no lugar desse ser humano. Se você continuar achando que deve morrer por isso, tudo bem, só não acredite que o resto do mundo tenha que seguir seu raciocínio.
NOTA FINAL
Nos Estados Unidos, país em que o aborto é descriminalizado, parece que alguém tentou cortar as verbas destinadas ao aborto no ano passado. O vídeo abaixo foi feito como resposta a esta tentativa e ele se enquadra perfeitamente neste texto e na situação atual do assunto no Brasil.
A quem interessar, nosso Ditador Supremo já escreveu um texto excelente sobre o aborto com o qual concordo 100%. Leitura recomendadíssima!