O Circo de Lucca

0

Se conseguir lançar, em circuito comercial, uma história em quadrinhos autoral no Brasil já é tarefa para poucos e abnegados guerreiros, o que dizer então de Jorge Otávio Zugliani, natural da cidade de Jaú e que atende pelo pseudônimo de Jozz? O sujeito, do alto de seus 25 anos, conseguiu transformar o trabalho de conclusão da disciplina HQ do curso de Desenho Industrial da universidade paulistana Mackenzie em um especial com excelente acabamento e lombada quadrada lançado pela Devir. Definitivamente, não é tarefa para qualquer um. Ele pode não ter conseguido o melhor dos resultados, conforme você descobrirá nos parágrafos abaixo. Mas só pela iniciativa louvável, já merece uma espiada. Não dói.

Orientado pelo professor Luiz Gê, consagrado quadrinhista tupiniquim (responsável pela excelente Tubarões Voadores, entre outros grandes trabalhos), Jozz roteirizou e desenhou uma história que transpira metalinguagem para todos os lados, em uma verdadeira declaração de amor ao mundo dos gibis. O protagonista é um certo Lucca (claramente batizado em homenagem à cidade italiana na qual acontece um dos maiores festivais de quadrinhos do mundo), estudante de Desenho Industrial idealista que sofre um bloqueio criativo na hora de desenvolver uma história em quadrinhos para uma de suas disciplinas na faculdade.

Soa familiar? Mas é claro que sim. Assim como o próprio Jozz, Lucca resolve transformar em ficção a sua própria vida, seus amigos e seu amor secreto, a garota que ele adora e odeia, sua colega de quarto Amanda, uma estudante de cinema de personalidade bem forte.

O “circo” do título surge no exato momento em que Amanda apresenta para a turma uma amiga que trabalha como trapezista – e Lucca passa a ser assombrado pela estranha figura de um palhaço sem nome, desenhado anteriormente por ele para ser o herói de sua história, mas descartado quase que imediatamente por não representar exatamente o que o desenhista esperaria de um personagem principal.

Todas as vezes que o palhaço entra em cena, os quadrinhos em preto & branco da narrativa comum escolhida por Jozz (e que, por conta de seu traço que mescla referências reais com expressões meio cartunescas, lembra bastante a proposta de Estranhos no Paraíso) ganham um colorido diferente. Ora é giz de cêra, ora guache, ora aquela cor desbotada dos mimeógrafos (alguém ainda lembra disso?) que os fanzineiros tanto usam, ora até os traços fortes e estourados da literatura de cordel.

E começam as discussões sobre a linguagem das histórias em quadrinhos, a produção de uma revista, métodos de colorização, movimentos de câmera, desenvolvimento de personagens… Tudo muito legal, bacana ou, como diria o Seo Abravanel, muito “bem sacado”, na melhor escola de Scott McCloud ou mesmo do grande mestre Will Eisner. Mas o que deveria ser justamente o grande segredo de O Circo de Lucca acaba se transformando em seu maior calcanhar de Aquiles. Dois motivos:

1) quando ele traz estes momentos metalingüísticos à tona, é fácil ver o autor dando lugar ao fã de quadrinhos em seu momento mais devotado e desvairado. A empolgação é tamanha que Jozz parece se esquecer que nem todo leitor de quadrinhos é também escritor/desenhista de quadrinhos e tem o mínimo de conhecimento necessário para entender determinadas passagens nos seus meandros. Ajudaria, em especial ao leitor eventual, um pouco mais de simplicidade, uma levada um tanto mais lúdica;

2) as referências ao universo quadrinístico são bem intencionadas, mas em dado momento parecem perdidas e esquecidas – em especial quando o autor passa a dar muito mais atenção aos conflitos de Lucca e seus colegas de classe e à sua relação com Amanda, pendendo para o óbvio, para o padrão e, por que não dizer, para o pueril. Passam-se muitas e muitas páginas até que o tal palhaço volte a mostrar seu nariz vermelho novamente.

Se a metalinguagem era para ser o pilar principal da trama, ela deveria ter sido mantida até o final – que, por sinal, perde boa parte de sua força ao tentar forçosamente enquadrar Iago, um dos colegas de faculdade que só vai dar as caras de fato nas últimas páginas da obra, como o antagonista. Não convence. Sei que a idéia era mesmo fazer um vilão pífio, meia-boca. Mas nem isso ele consegue transmitir para o leitor, como num daqueles filmes hollywoodianos que caminham relativamente bem até tentar fazer um encerramento acelerado, em cinco minutos, do tipo “Putz, é mesmo! Eu precisava acabar o filme e só me sobraram cinco páginas!”.

Devo dizer, de fato, que também me incomoda um bocadinho a ambientação da trama justamente naquele meandro universitário tipicamente paulistano da Vila Madalena, meio neo-hippie, no qual todo mundo toca ao violão as baladas dos Los Hermanos e do Teatro Mágico – não por acaso, banda na qual os músicos se vestem de palhaços. O clima é facilmente reconhecível para quem vive em SP, mas um tanto obscuro para o restante do país… Como bem sabemos, o mundo não gira ao redor do eixo Rio-SP.

Merecem destaque, no entanto, as páginas pós-história, uma espécie de making-of passo a passo de como Jozz produziu este especial. Apesar de pecar um pouco pela extensão demasiada e pelo mesmo excesso de informação especializada dos enxertos metalingüísticos, vale pela curiosidade de saber que até Winsor McCay, do clássico Little Nemo, serviu de referência para os seus desenhos.

Quem sabe da próxima vez os Alfredos sejam mais generosos?

Galeria

Galeria