De todos os mangás lançados no Japão até hoje, os especialistas são unânimes em afirmar que Lobo Solitário, lançado em setembro de 1970 com o título original de Kozure Ookami (algo como “O lobo e seu filhote”), foi um dos mais importantes de todos os tempos. A obra de Kazuo Koike e Goseki Kojima, além de revitalizar o gênero das histórias de samurais (como em O Último Samurai) que estavam em baixa desde o final da Segunda Guerra Mundial, abriu as portas da literatura japonesa no mundo ocidental e foi fundamental para a reviravolta das histórias em quadrinhos nos anos 80, quando a inocência abriu espaço para o realismo e seus anti-heróis.
Mesmo com todo esse currículo na bagagem, o mangá não se tornou “pop” como seus futuros conterrâneos (Dragon Ball, Dragon Quest, Sailor Moon, Doraemon, Saint Seya e por aí vai), talvez por apresentar uma leitura mais complexa e um tema muito mais maduro que outros trabalhos orientais. Se você é um desses perdidos tipo o Corrales que não faz idéia do que estou falando, fique calmo e prepare-se para conhecer uma das mais belas sagas já contadas.
A história nos leva ao Japão feudal do período Edo (nosso século XVII) onde conhecemos o espadachim Itto Ogami (o Lobo Solitário do título) e seu filho de 3 anos Daigoro. Ogami era um alto oficial do governo e respondia diretamente ao Shogun (ditador / imperador). Basicamente, sua função era cortar a cabeça dos nobres rebeldes que cometiam o seppukku (suicídio onde se corta a própria víscera diante do inimigo como um sinal de honra). Durante o ritual, um representante do governo – escolhido a dedo entre os mais habilidosos com a espada – era designado para decapitar o suicida em questão e evitar o sofrimento após o corte do abdômen. O golpe tinha de ser certeiro e rápido, por isso Ogami foi o selecionado dentre os mais habilidosos das mais tradicionais famílias. A nomeação de Ogami, no entanto, nunca foi aceita pelo clã rival Yagiu, que arma um complô para destituí-lo do cargo, o que resulta no assassinato de sua esposa.
Desiludido com o shogunato (que ainda o acusa de traição), Ogami foge com seu filho de 3 anos, o esperto Daigoro, e escolhe o caminho dos ronin (samurais sem mestres – excluídos da sociedade) e parte em busca de vingança contra os Yagiu, vivendo como um assassino de aluguel ao preço de 500 peças de ouro (ryos).
Os capítulos geralmente são independentes entre si (ao contrário de mangás populares como Dragon Ball ou Evangelion) e apresentam quase sempre um mesmo padrão: Itto Ogami e Daigoro chegam a um vilarejo onde alguém contrata seu serviço para matar algum ladrão / cobrador de impostos / rival / traidor. O ronin aceita a missão, sai em busca da vítima e mata o desgraçado (em um duelo curto, nada de enrolações). Antes de morrer, o cidadão faz alguma revelação que leva o Lobo Solitário de volta ao seu contratante para tirar algumas satisfações e seguir ao próximo vilarejo onde o ciclo se repete.
Você deve se perguntar onde entra o pequeno Daigoro na história. O filho de Itto é muito mais do que um simples alívio cômico para a carnificina que se segue. Além de presenciar grande parte dos duelos do pai, o garoto sabe que seu destino também está no caminho da espada, pois um dia, a defesa da honra restante dos Ogami estará em seus ombros. Essa escolha do futuro da criança ocorre em um momento emocionante no final do primeiro volume. Considero esses quadrinhos uma das seqüências mais marcantes das HQs ao lado de petardos como a morte de Gwen Stacy em Homem-Aranha ou a luta entre Batman e Super-Homem no primeiro Cavaleiro das Trevas.
Apesar de simples, o roteiro é muito bem estruturado e as histórias curtas prendem a atenção do leitor sem a necessidade de diálogos intermináveis. Se levarmos em conta que o mangá original do Lobo Solitário tem mais de 30 anos, é um feito extraordinário que mostra o avanço da cultura oriental e a influência clara nos gibis norte-americanos e ingleses da década de 80 em diante.
Referências e lembranças do Lobo Solitário podem ser encontradas em diversos autores consagrados como Frank Miller e Alan Moore. Na obra do primeiro, em especial, podemos dizer sem medo que a maior inspiração para o Cavaleiro das Trevas – a versão moderna de Batman – é uma reprodução fiel do trabalho de Kazuo Koike (o próprio Miller nunca fez questão de esconder isso), sua construção psicológica através da vingança e do anti-herói que busca sobretudo recuperar a dignidade perdida por algum evento marcante em seu passado.
Os traços de Goseki Kojima podem não ser tão detalhados para os padrões modernos como os de Takehiko Inoue (de Vagabond), mas também chamam a atenção pelos ângulos inusitados e expressões dos personagens, além da ótima reconstituição do período histórico.
Mesmo com toda a qualidade, o Lobo Solitário infelizmente sofre de um problema em sua versão brasileira que não posso deixar em branco: o excesso de termos e frases mantidas no japonês original. Apesar de apresentar um ótimo glossário ao final de cada edição, é irritante que termos como “rezar”, “esposa“, “delegacia”, entre outros exemplos, apareçam no idioma original da Terra do Sol Nascente. É simplesmente maçante ter de olhar o glossário toda hora à procura destas palavras. Quebra o ritmo da leitura e desprende a atenção da história contada. Concordo que, em alguns casos, especialmente em nomes de estilos de lutas ou termos específicos como o seppukku, a tradução sacrificaria o sentido original do autor, mas também não precisamos exagerar, leia este trecho extraído do vol. 5 e me diga se você não concorda: “quando o senhor Ogami encontrar um desses Rikudogôfu ele informa onde ele se encontra deixando um Dôchu-jin desses”. Pois bem, Rikudogôfu é um amuleto de proteção enquanto que Dôchu-jin é um código formado por pedras, mas custava esses termos já aparecerem na língua de Camões?
Com exceção desse pequeno deslize, a leitura de Lobo Solitário transcorre maravilhosamente bem e é ainda mais agradável se você é um interessado pela cultura japonesa.
Essa é a terceira vez que o mangá do Lobo Solitário chega às bancas brasileiras. As duas primeiras, respectivamente pela Cedibra e Nova Sampa no final dos anos 80 e começo dos 90, foram verdadeiros fiascos de vendas, talvez pelo período “pré-animês e mangás” que vivíamos naquele momento e falta de comprometimento das editoras responsáveis (as histórias vieram fatiadas). A nova versão brasileira vem pelas mãos da Panini em edições de 300 páginas e segue o padrão original japonês (leitura da direita para esquerda) como já se tornou costume em mangás lançados aqui na nossa terrinha. Tem também um preço razoável (tabelado em, R$ 12,90) pela qualidade do papel e número de páginas. Se você ainda não conhece as aventuras de Itto Ogami e gosta de uma boa leitura, não ouse perder essa publicação.