Linha de Passe, de Walter Salles (um dos mais importantes e aclamados cineastas brasileiros), é um filme bastante realista, sensível e, sobretudo, humano. Sua estética crua e documental, que busca captar e representar a realidade tal qual ela se apresenta aos nossos sentidos, sem acobertamentos, omissões ou falseamentos, não nasceu por acaso. O pontapé inicial do longa se deu a partir de dois documentários – dirigidos por João Moreira Salles, irmão de Walter – cujas temáticas estão, de alguma forma, presentes em Linha de Passe: o boom das igrejas evangélicas no Brasil e o futebol como esperança de ascensão social.
O enredo é centrado em uma família de cinco membros, moradora da Cidade Líder, Zona Oeste de São Paulo. Construídos em narrativas paralelas que se interligam, aos moldes de Magnólia, de Paul Thomas Anderson, os personagens – todos protagonistas – ganham a densidade e o desenvolvimento necessários a um filme calcado nos dilemas e nas angústias morais e existenciais de seres humanos em uma busca diária pela sobrevivência. Cleuza (Sandra Corveloni) é uma empregada doméstica grávida pela quinta vez e torcedora fervorosa do Corinthians. Ela é o pai e a mãe de quatro filhos: Denis (João Baldasserini), motoboy e pai de um pequeno garoto que o rejeita; Dario (Vinícius de Oliveira), aspirante a jogador de futebol que não consegue ingressar em um grande clube em razão dos esquemas de favorecimento e corrupção tão comuns nas divisões de base do esporte bretão; Dinho (José Geraldo Rodrigues), frentista e pastor evangélico recém-convertido; e Reginaldo (Kaique Jesus Santos), o caçula e o alívio cômico da família, que sai à procura de seu pai quando descobre que ele é um motorista de ônibus.
Há, ainda, um sexto protagonista em Linha de Passe. E ele não é nenhum ator. A cidade de São Paulo, aqui representada em toda a sua opressora magnitude, com um trânsito caótico e um ar cinzento e desolador, reforça ainda mais a condição de impotência, de segregação e de invisibilidade tão característica das parcelas marginalizadas da sociedade. Segundo o próprio diretor, a escolha por São Paulo se deu por dois motivos: a natureza cinematográfica da cidade e o saturamento do Rio de Janeiro, palco já desgastado de inúmeros outros filmes brasileiros. “Amo o Rio de Janeiro, mas a ausência do poder público criou aquela relação morro-asfalto já tão mostrada no cinema. Não fazia sentido voltar a uma geografia tão explorada cinematograficamente. E São Paulo é grande, cheia de meios tons. Seu caos urbano é visualmente interessante”, afirmou o diretor em entrevista ao site Abril.com.
O confronto entre o morro e o asfalto, a que Walter Salles se refere, não é, felizmente, a proposta temática de Linha de Passe. Visando, ainda que de forma tímida, ampliar o leque temático do cinema nacional, Salles retrata a vida na periferia sob uma perspectiva um tanto quanto original, sem estereotipar ou vitimizar os personagens e sem perpetuar o lugar-comum de que a favela é, necessariamente, o reduto da violência e da criminalidade. Cleusa e sua família tentam fugir por diversas vezes do perverso e tentador caminho da bandidagem sem, no entanto, conseguir mudar um destino condenado ao sofrimento. Essa é a mensagem pessimista, ou melhor, realista, que Linha de Passe transmite: a ausência do Estado cria barreiras quase que intransponíveis para quem quer seguir o caminho da legalidade.
O longa, como retrato social que é, bebe explicitamente em fontes neo-realistas italianas. Com um quê de Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti, Linha de Passe compartilha diversas semelhanças com os postulados do movimento cinematógrafico italiano da década de 40. O baixo orçamento, a utilização de atores não-profissionais, as improvisações, a espontaneidade criativa, a ausência de figurantes, as filmagens in loco – isto é, nos locais onde verdadeiramente se passam as ações – e a temática social e humanista fazem deste filme um grande exemplar da escola realista.
Com atuações impecáveis de todo o elenco – destaque para Sandra Corveloni, vencedora do prêmio de melhor atriz no festival de Cannes logo em seu primeiro longa –, o novo filme de Walter Salles é fundamental para quem quer compreender um pouco mais a deplorável situação social do nosso pais e já está cansado do confronto clichê entre morro e asfalto. Ao mesmo tempo cru e humano, seco e sensível. Eis Linha de Passe: uma poesia da miséria.