Heavy Rain

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Você está preparado para sofrer para salvar alguém que você ama? Essa é uma pergunta feita algumas vezes no decorrer de Heavy Rain, um dos jogos mais inovadores que joguei em muito, muito tempo. Tão inovador, aliás, que ele quase não é um jogo.

Se você também sente falta dos adventures que bombaram nos anos 90, e tentou revivê-los inútil e nostalgicamente nas tentativas de ressurgimento que o gênero teve no Wii, prepare-se. Temos aqui um adventure tão evoluído, tão diferente e tão atual que é difícil até colocá-lo no mesmo patamar de clássicos como a série Monkey Island ou Full Throttle.

O ORIGAMI KILLER

Heavy Rain gira em torno de uma série de assassinatos perpetrados por um meliante apelidado de “Origami Killer”. Ele rapta crianças, e elas são encontradas mortas alguns dias depois, com uma orquídea no peito e um origami nas mãos. Você controla quatro personagens (e um secreto próximo ao final) que são ligados de forma diferente ao caso. São eles:

Ethan Mars: Ethan é o pai da última vítima do serial killer. Pouco depois do seu filho ser raptado, ele encontra uma caixa com uma série de testes que vai ter que seguir, se quiser salvar seu filho. Esses testes, claramente inspirados por Jogos Mortais o levam a tomar decisões horríveis, que nenhum ser humano deveria ser obrigado a tomar.

Norman Jayden: Norman é um investigador do FBI, enviado para ajudar a polícia local a encontrar o assassino. Ele tem um óculos estiloso de realidade virtual e seus capítulos são os que mais se aproximam dos adventures tradicionais, pois consistem em interrogar suspeitos e procurar pistas nos cenários.

Madison Paige: Madison é uma garota que, por puro desígnio de Odin, encontra Ethan durante seus testes e acaba se envolvendo no caso. Ela protagoniza algumas das melhores cenas de ação do jogo.

Scott Shelby: Scott é um detetive particular investigando o caso. Ele procura por dicas visitando a família das vítimas anteriores do assassino.

JOGANDO O FILME

Boa parte da forma de interação com o jogo é através de escolhas. O que responder num diálogo ou seguir em frente ou não com um teste são algumas das decisões que você vai ter que tomar, sabendo que elas vão afetar o desenvolvimento da história e sua escolha ou falta de habilidade pode até mesmo matar o personagem, impedindo que suas futuras contribuições para a história sejam feitas.

Nos momentos mais tranquilos, o jogo lembra bastante um adventure tradicional. Você anda pelo cenário procurando lugares ou pessoas com quem interagir. Porém, a história vai rolando independente do que você faça. Em outras palavras, boa parte dessas cenas tem tempo, o que te obriga a escolher se você vai brincar com seus filhos ou arrumar a mesa, por exemplo.

Quando a ação entra em jogo (e acredite, tem cenas de ação embasbacantes por aqui), começam a rolar os famosos quicktime events. Ou seja, você tem que apertar botões de acordo com o que aparece na tela. A diferença, tal qual acima, é que se você errar, a história continua. Por exemplo, logo no início, você está brincando com seus filhos de um duelo de espadas. Se você apertar os botões direitinho, vai dar uma surra (de brincadeira, claro) no moleque. Se não, vai deixá-lo ganhar como um bom pai faria. Às vezes a melhor escolha é não fazer nada. Em outras, a inação pode levar à sua morte. O que você vai fazer?

MUITO MAIS DO QUE APARENTA

Lendo acima, você provavelmente pode deduzir que este é um suspense investigativo tradicional e um “jogo” na linha de Dragon’s Lair. O fato é que os personagens são desenvolvidos com tamanho capricho que é simplesmente impossível não se importar com cada um deles.

Os primeiros capítulos, por exemplo, mostram Ethan brincando e cuidando dos seus filhos, o que é tocante e aumenta ainda mais o drama quando seu filho é finalmente raptado.

Em momentos mais tensos, quando seus personagens são atacados de repente, você fica desesperadamente apertando os botões na tentativa de virar o jogo. Quando enfim consegue assumir a ofensiva, a sensação de vingança e de “esse desgraçado merece apanhar” é indescritível e é diferente de tudo que qualquer jogo ou filme já me fizeram sentir. É quase como se você realmente estivesse vivendo isso, uma evolução não apenas dos videogames, mas do próprio cinema.

E tudo isso dá uma carga emocional absurda para cada decisão. Até que ponto é certo fazer coisas horríveis para salvar uma criança? Muitas dessas escolhas são coisas sem volta. É realmente isso que você quer fazer com seu personagem? Heavy Rain atinge o que jogos como Bioshock vêm tentando há anos: dar um peso emocional à história, fazendo o jogador pensar que suas escolhas realmente importam.

ADENDO PARTICULAR

Faço aqui um adendo particular meu, mas duas coisas no jogo aumentaram ainda mais meu investimento emocional nessa história. O Ethan, justamente o pai que tenta salvar o filho, é igualzinho ao meu próprio pai! É tão parecido que chega a parecer que foi baseado nele mesmo! Assim, ficou impossível não ver meu próprio progenitor em várias dessas cenas.

A segunda coisa é uma parte próxima ao final do jogo, onde você conversa com uma senhora vítima de Alzheimer, provavelmente a doença mais cruel que existe e a maior prova de que Deus é um sujeito sádico que fica inventando formas terríveis de nos ver sofrer cada vez mais. Vi pessoas internet afora reclamando dessa cena, dizendo que a velhinha era tão irritante que queriam afogá-la com o travesseiro – e eu até entendo isso.

Porém, tive uma tia de quem gostava muito que passou seus últimos anos sofrendo dessa doença horrível, que afeta não só quem a tem, mas também as pessoas próximas a ela. E é realmente muito triste e a cena em questão me fez rever as atitudes e os sofrimentos da minha própria tia. Provavelmente esse foi o momento que um jogo de videogame chegou mais próximo de me fazer chorar. E isso é a maior prova do capricho e da qualidade absurda presentes aqui.

DESTAQUES POSITIVOS

Os melhores momentos do jogo ficam a cargo do Ethan. Enquanto os outros personagens têm histórias típicas de filmes de investigação, os capítulos do Ethan beiram o lado mais assustador do terror. Cada um dos cinco testes pelo qual ele passa traz perigos e decisões realmente terríveis, que vão fazer você roer as unhas até seus dedos ficarem em carne viva. Se você acha que as cenas dos “jogos” de Jogos Mortais dão medo ou são aflitivas, espere até jogar isso.

Nada aqui é tão forçado quanto na série de filmes. Não temos grandes instalações com máquinas de tortura primárias, mas o fato de você ter que decidir, sabendo que suas escolhas afetarão o futuro da história aumenta consideravelmente os fatores “medo” e “aflição”.

Jogos Mortais não é o único filme de terror que inspirou Heavy Rain. Uma cena específica foi claramente chupada de O Albergue e, tal qual acontece nos testes do Ethan, dá ainda mais medo do que sua contraparte cinematográfica.

Perto do final, também tem uma outra cena que provavelmente é a coisa mais big fuckin’ dick já colocada em um game não protagonizado pelo Duke Nukem. Basta dizer que é a invasão da mansão. Você vai saber quando chegar lá, até porque vai se sentir uma versão mais viril do Chuck Norris.

ILUSÃO

E aqui começa a parte negativa desta humilde resenha. Sabe como eu falei que suas escolhas afetam a história? Então, afetam bem menos do que parece. Tudo bem que o rumo geral não seja afetado, afinal, o serial killer é quem é e nem tudo depende das suas decisões. Mas cito um exemplo de algo que me incomodou.

Em vários momentos, você tem algumas opções de agir de forma simpática ou antipática, calma ou agressiva. Na minha primeira jogada, tentei tomar sempre as melhores decisões, para manter os relacionamentos sem grandes desgastes ou problemas. E, se é verdade que responder a algo de forma calma ou agressiva afeta a reação imediata do outro personagem, é frustrante constatarmos que isso afeta, no máximo, até o final do capítulo e que a próxima aparição deles vai rolar do mesmo jeito, independente de como você os tratou antes.

A maior prova disso é que os capítulos são basicamente os mesmos, não importa suas decisões. Se você falhar num desafio do Ethan (e não morrer, claro), ele vai continuar fazendo os seguintes como se nada tivesse acontecido. Tirando algumas raras exceções, suas decisões só vão realmente afetar o final do jogo a partir do capítulo “On The Loose”. Não por acaso, dá para você ver 80% dos 18 finais mudando apenas as decisões que você tomar a partir desse momento.

A favor do jogo, no entanto, admito que ele faz um excelente trabalho para criar a ilusão de que suas decisões estão realmente direcionando a história. Embora você esteja constantemente em perigo, não acho que qualquer pessoa tentando manter todos os personagens vivos tenha realmente alguma dificuldade em fazer isso. E isso é até positivo, pois permite que pessoas que não têm experiência com games possam conhecer e se divertir com o jogo – e só chegar aos finais ruins se essa for realmente a intenção.

No final das contas, talvez essa ilusão de que você está no controle seja o que realmente importa, pois é isso que faz com que a sensação de jogar Heavy Rain seja tão única.

PROBLEMAS NA HISTÓRIA

Por mais que a história seja excelente e o principal motivo para se comprar Heavy Rain, ela não é isenta de problemas, já que alguns buracos realmente incomodam. Em determinado momento, por exemplo, você terá a possibilidade de ligar para um dos outros personagens, inclusive com o seu dizendo “só posso confiar nele”. Detalhe: esses personagens nunca se encontraram e, de todas as formas diferentes que joguei, não consegui fazer eles se encontrarem nenhuma vez.

Além disso, a identidade do serial killer que, como sempre rola nesses whodunnit, é surpresa até perto do final, abre alguns outros furos. Quando foi revelada, pensei “WTF?” e achei que não fazia sentido nenhum com as atitudes anteriores do personagem. Jogando de novo, vi que faz sentido sim, pelo menos na maior parte. Na maior parte, e esse é o problema, pois tem coisas que não se encaixam. Outras coisas, por outro lado, nunca são explicadas ou desenvolvidas, inclusive coisas realmente importantes, como os blackouts do Ethan.

Finalmente, uma das melhores cenas de ação do jogo termina com a revelação de que “era apenas um sonho”. Poxa, isso não se faz. Ninguém gosta de ser enganado dessa forma. Talvez o Allan, mas ele é casado.

TALK GEEKY TO ME

Graficamente, Heavy Rain é, em 95% do tempo, nada abaixo de lindo. O design realista e a animação caprichada, especialmente nos movimentos faciais, são impressionantes e chegam bem perto de filmes como O Expresso Polar.

Os 5% restantes são alguns raros momentos em que a animação rola de um jeito estranho ou irreal ou que texturas popam do nada, quando você já está bem perto do negócio. Nada grave e, no geral, Heavy Rain é um excelente exemplo do poder do PS3.

O som também é, em 95% do tempo, perfeito. Excelentes efeitos surround, música que deixa tenso quando tem que deixar, que deixa fofo quando tem que deixar (sim, a história tem alguns momentos que são de uma fofura indescritível) e que some quando tem que sumir, exatamente como seria num bom filme.

A dublagem também é excelente. Protagonistas e personagens secundários são dublados com carisma, emoção e realismo. Com exceção de um, justamente o responsável pelos 5% negativos do som: Norman Jayden. É uma pena que logo um dos quatro protagonistas tenha um dublador tão fraco. Em alguns momentos (“Tell us what you know, doctor!”), a interpretação dele chega a ser constrangedora. Felizmente, os outros atores são tão bons que fica mais fácil relevar o sujeito.

JOGABILIDADE E CÂMERA

Talvez aqui esteja o principal defeito de Heavy Rain, e aquele que é mais difícil de relevar. Nunca, em nenhum jogo na história da humanidade, algo simples como andar foi tão difícil. Para andar, você segura o R2 enquanto dá a direção na alavanca analógica. Ok, embora não dê para entender o porquê de não ser simplesmente mexendo na alavanca, como qualquer outro jogo, isso não deixa claro porque é tão difícil.

O problema é que o personagem não responde como deveria. Muitas vezes você manda ele ir em uma direção e ele vai para outra ou então demora muito para virar. E isso sem falar quando ele fica preso no cenário, o que te obriga a sair do jogo. É difícil entender como uma ação que sempre funcionou perfeitamente, desde a época do Atari, possa ser tão difícil aqui.

A câmera também não ajuda muito. Ela tem ângulos fixos, que podem ser trocados ao toque de um botão, mas muitas vezes nenhum deles é apropriado. Em outras, quando ela muda de ângulo automaticamente, pode causar desorientação temporária.

Além disso, vários dos QTEs são aquelas coisas que ninguém gosta de fazer, como apertar um botão o mais rápido possível ou chacoalhar o controle. E, por uma decisão estética, ocasionalmente os prompts ficam atrás do personagem ou de um objeto do cenário. Várias vezes, inclusive, eles ficam fora da câmera. Sem saber da opção escondida, você acaba escolhendo a que está visível – e talvez ela não seja a melhor decisão para o momento.

Completando as más decisões de design, sempre que seu personagem está tenso, o prompt vai aparecer tremendo. Além de isso deixar mais difícil interpretar o botão a ser apertado, sabe como o jogo identifica os momentos que você tem que martelar o botão o mais rápido possível? Tremendo o prompt. Ou seja, prepare-se para altas confusões do barulho e vários momentos de jogar o controle no gato quando você estiver sendo ameaçado por um bandidão e apertar o botão repetidamente quando era para apertar apenas uma. Ou vice-versa.

PRECIPITAÇÃO OBESA

O que quero frisar aqui é que o jogo tem problemas sim, mas eles foram listados nessa resenha apenas para deixar o texto o mais completo possível. Isso significa que, se você gosta de cinema e/ou de games, essa é uma experiência que você não pode perder.

É um jogo inovador e é um filme que causa sensações que nem os melhores jogos da história foram capazes de causar até hoje. Boa parte dos seus problemas mais graves são decorrentes da falta de experiência. Afinal, é um jogo diferente de qualquer outra coisa que você jogou até hoje. É um protótipo, um nenê de uma nova forma de entretenimento. E, como tudo que acabou de surgir, ainda tem arestas a serem aparadas e caminhos para melhora. E nada disso diminui sua importância.

Na pior das hipóteses, Heavy Rain cria um novo gênero de jogos, que com certeza vai receber vários títulos semelhantes nos próximos anos. Porém, não me espantaria se sua influência se expandisse além das fronteiras do mundo dos games e chegasse à TV e ao cinema. Por isso, não perca tempo e dê um jeito de conhecer Heavy Rain e ver a história de uma nova forma de narrativa acontecendo.

CURIOSIDADES:

– Peguei este jogo cerca de uma semana depois da sua data de lançamento e ele já pediu uma atualização de 226 mb. O que diabos tinha de tão errado no jogo para precisar de um update desse tamanho logo que ele saiu?

– O jogo vem com uma folha quadrada e, durante o longo processo de instalação, ele ensina o jogador a fazer o origami que ilustra a caixa. Legal, né?

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Nota
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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. É o autor dos livros infantis "Pimpa e o Homem do Sono" e "O Shorts Que Queria Ser Chapéu", ambos disponíveis nas livrarias. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
heavy-rainAno: 2010<br> Gênero: Adventure<br> Plataforma: PS3<br> Fabricante: Quantic Dream<br> Versao: PS3<br> Distribuidor: SCEA<br>