Eu estou bem ansioso por um certo jogo cyberpunk. Um que está em desenvolvimento desde 2012, e que pode ou não dar as caras ainda este ano. Pois é, você sabe do que eu estou falando. Sim, aquele jogo. Mas ele foi adiado pela terceira (e esperamos que última) vez em menos de 10 meses, e ficamos todos a ver navios – nenhum deles, infelizmente, atracando no porto para desembarcar umas cópias pra gente.
Para nossa sorte (será?) existe outro jogo cyberpunk que acabou de sair do forno. Um que, ao contrário daquele outro, conseguiu a façanha de chegar às lojas na data prevista. E todos sabemos que mais vale um jogo na mão do que 2077 voando.
Então pegue um lencinho (para enxugar as lágrimas), desembainhe sua espada (não aquela!) e venha conferir nossa Análise Ghostrunner – também conhecido como o único jogo cyberpunk que você pode jogar neste mês.
MAS ANTES, UM NARIZ DE CERA (OU: AS TERRÍVEIS AVENTURAS DO HOMEM COMUM)
De vez em quando eu pego uns freelas. Semana passada, por exemplo, estava revisando um livro sobre o ensino de História no Brasil e o funcionamento dos editais para seleção de obras didáticas dessa disciplina (um assunto ainda pior do que parece). O arquivo em Word tinha 290 páginas. Levei 10 dias para revisar 220. Então, no décimo dia, já um tantinho embriagado, esbarrei no computador e quebrei o pen drive que estava conectado a ele.
Por uma combinação de fatores (burrice, descuido, esquecimento e falta de zelo), a única versão que eu tinha do documento estava naquele pen drive. Rodei a cidade inteira atrás de alguém que consertasse o dispositivo. Mas, no fim do dia, só restou admitir a triste verdade: eu teria que começar a revisão do zero, encarando novamente aquelas 200 páginas que já tinha visto. Desnecessário dizer que me senti uma versão proletária do Bill Murray em Feitiço do Tempo.
Como dá para imaginar, foi uma experiência frustrante e repetitiva. Mas não foi a única experiência frustrante e repetitiva que vivenciei nos últimos dias – nem a única experiência frustrante e repetitiva envolvendo aparatos tecnológicos. Para saber mais, acompanhe-me até o próximo parágrafo.
ANÁLISE GHOSTRUNNER (AGORA SIM)
Ghostrunner é um jogo meio plataforma, meio ação em primeira pessoa, meio hack and slash – sim, ele tem três metades. Você controla Jack, um ciborgue metido a ninja que perdeu a memória ao despencar (ser lançado, tecnicamente) do alto de um edifício. Assim como ele, não sabemos muito bem o que está pegando. Até existe uma cinemática para contextualizar um pouco aquele universo, mostrando uma peleja entre Jack e Mara, a vilã do jogo, mas logo a gente percebe que a história não é mais que um pano de fundo para justificar o progresso enquanto saracoteamos por aí.
Seu objetivo é claro, mas nada simples: escalar a Torre Dharma, último refúgio da humanidade, e confrontar Mara, a Mestre das Chaves, que domina com tentáculos de ferro o que sobrou da sociedade. Sendo o último dos ghostrunners – espadachins de elite que ignoram a máxima “não traga uma faca para um tiroteio” –, cabe a você galgar os andares da Torre, dar uns sopapos na mulher que te arrebentou a fuça e botar ordem na casa.
E se você acha que já viu essa premissa antes, é porque viu mesmo. Os filmes The Raid e Dredd tratam justamente de um sujeito avançando pelos andares de um prédio a fim de confrontar o inimigo. O filme do juizão, inclusive, também traz uma antagonista com tendências ditatoriais.
A história de Ghostrunner não ganha pontos por sua originalidade, mas a verdade é que você não vai se importar com isso. A maior parte do enredo é contada por meio de diálogos com personagens que não chegamos a ver pessoalmente. No meio de toda a correria, quase nem dá tempo de ler e ouvir o que eles estão dizendo. E sério mesmo, não faz muita diferença.
COMO A COISA FUNCIONA
Ghostrunner se divide em segmentos de plataforma e de combate. Ele se dá muito bem em ambos, ainda que eu prefira os trechos de plataforma – que lembram bastante o gameplay de Mirror’s Edge, só que mais refinado. Neles, você precisa fazer seu caminho através de obstáculos que se tornam cada vez mais exigentes. Não basta saltar de uma parede para outra como um macaco sarnento. Você vai ter que administrar seu tempo de forma precisa, evitando ser destruído por máquinas moedoras de carne ou cair para a morte em um abismo de pixels negros.
O verdadeiro desafio, contudo, está nos combates. Eles são rápidos e punitivos, e quase chegam a parecer injustos. Seguindo a linha de jogos como Hotline Miami, todo mundo morre com apenas um golpe – você e os inimigos. A diferença é que estes geralmente atacam a distância, usando pistolas, metralhadoras, raios laser e o escambau, enquanto você tem somente uma espada (que nada mais é do que uma faca grande, convenhamos).
Isso significa que você estará sempre em desvantagem (numérica e belicamente falando). Para matar um inimigo, é preciso desviar de suas balas e se aproximar o suficiente para desferir o golpe, então seguir para o próximo desafeto e fazer o mesmo. O problema é que cada arena costuma ter uns quatro ou cinco inimigos (na segunda metade do game esse número aumenta). Enquanto você tenta se aproximar de um, estará sendo fuzilado pelos outros, e não é nada incomum ser atingido por um disparo que não fazemos ideia de onde veio.
INIMIGOS PARA TODOS OS (DES)GOSTOS
Nas primeiras fases, a coisa é até um pouco mais simples: os inimigos usam apenas pistolas, e se tornam mais ou menos previsíveis depois que você pega a manha – ainda que volta e meia pareçam ter um certo poder de clarividência, sabendo exatamente onde você estará no instante seguinte.
Mas logo aparecem inimigos com metralhadoras, e outros que se escondem atrás de escudos. Há uns bombadões que saltam grandes distâncias e te alcançam em questão de segundo (sim, no singular), e máquinas bípedes que lembram aquele bicho do Robocop. Mais para a frente encontramos ninjas, drones, snipers, criaturas que explodem ao se aproximar de nós e outras bizarrices.
Os novos inimigos são apresentados em situações relativamente seguras, quase como tutoriais. Isso é útil para que você entenda como funciona aquele novo adversário antes de ser enviado para morrer em uma sala cheia deles. Mas sem demora você estará enfrentando meia dúzia de inimigos diferentes ao mesmo tempo, cada um demandando uma manobra ou habilidade distinta para ser vencido.
KILL THEM ALL
Para matar os ninjas, é preciso bloquear seus golpes no tempo certo e contra-atacar; já os “saltadores” ficam vulneráveis depois que aterrissam, exigindo que você se esquive de seus golpes e ataque na sequência; enquanto os soldados com escudo devem ser contornados e golpeados por trás (ui).
Agora, imagine uma sala com dez inimigos, de uns quatro ou cinco tipos diferentes, atirando simultânea e muito precisamente enquanto você corre de uma parede para outra, lutando para alcançar as plataformas ao mesmo tempo que se esquiva dos disparos e busca uma brecha para acertar os adversários. Um pula em cima de você, outro se teleporta para o seu nariz, um terceiro dispara uma saraivada de balas. De repente você consegue matar sete, oito, nove inimigos! Mas aí tropeça, quebra o pescoço e precisa limpar a sala toda de novo. É mole ou quer mais?
MAIS!
Pois há mais: como se não bastasse, muitos inimigos são protegidos por campos de força, tornando-se invulneráveis a sua espada. Antes de acabar com eles, você terá que encontrar geradores escondidos pelo cenário e destruí-los, para somente então apresentar a seus inimigos o conceito de “fatiou, passou”.
Se errar uma esquiva, você morre. Se errar o tempo dos ataques inimigos, você morre. Se errar o salto, você morre. Se parar pra coçar o nariz, você morre. E mesmo se conseguir assassinar geral, fazendo acrobacias mil e pulando igual pipoca, mas ainda assim não lançar o seu gancho a tempo de emendar aquela manobra aérea no instante perfeito, já sabe: você morre. Isso é Ghostrunner…
E olhe que eu nem comentei sobre os chefes! Sente o drama:
Vencer cada área e passar para o checkpoint seguinte é um exercício de paciência e repetição; de repetição e paciência. A duração das fases varia, mas costuma girar em torno de 20 a 40 minutos, com algumas demorando além ou aquém disso (a fase mais longa me tomou pouco mais de uma hora, e a mais breve só 15 minutos).
POR OUTRO LADO
Por outro lado, você também tem uns truquezinhos na manga. De início, contará apenas com uma esquiva em câmera lenta, que pode ser ativada enquanto seu personagem está no ar. Ainda que seja simples, é a ferramenta mais útil no jogo inteiro. Também podemos deslizar pelo chão, dar um impulso para encurtar distâncias rapidamente e, ao apertar triângulo, conferir a espada bem de pertinho – para, sei lá, ver se ela não perdeu o fio.
É preciso ser justo e dizer que Ghostrunner pelo menos tem a consideração de entregar checkpoints frequentes. Geralmente há um antes de cada batalha, e às vezes dois para batalhas mais complexas (e o mesmo acontece para os trechos de plataforma). Além disso, o respawn é quase instantâneo. Se for rápido o suficiente para apertar o botão, você nem chegará a ver a tela de reload. Mas isso, claro, é o mínimo que se pode esperar de um jogo que parece fetichizar o fracasso do jogador.
POPERÔ E HABILIDADES
Um incentivo para repetir tudo de novo e mais uma vez é a trilha sonora. Ela é um prato cheio para quem curte música eletrônica, e foi inteiramente composta pelo russo Daniel Deluxe, já conhecido na cena synthwave. Se liga na sonzeira:
Mas como eu dizia: nem tudo é tão desgraçadamente difícil. Com o tempo, temos acesso a upgrades para nossas habilidades. Eles permitem coisas como defletir um projétil de volta para o inimigo, diminuir o tempo de recarga dos impulsos, destacar os adversários no cenário etc. E também podemos conquistar e melhorar quatro habilidades especiais que ganhamos ao longo do jogo (a primeira bem no comecinho, e a última somente na reta final).
QUEBRA-CABEÇAS VÃO ROLAR
Funciona assim: de quando em vez você será obrigado a visitar uma espécie de mundo virtual. Lá não existem combates, apenas puzzles e trechos de plataforma. São fases maçantes, especialmente porque (com exceção da última) não permitem utilizar nossas habilidades de parkour.
Basicamente, ficamos pulando de um lado a outro e fazendo coisas nada ninjas, como coletar esferas, percorrer labirintos e resolver quebra-cabeças pouquíssimo inspirados. Essas intercalações ocorrem com relativa frequência – pelo menos uma vez a cada duas fases – e quebram completamente o ritmo do jogo.
Porém, são essas fases que te permitem ganhar upgrades e novas habilidades especiais. Entre elas, temos o Tufão (para repelir inimigos usando a Força), o Ímpeto (que permite lançar uma onda de choque a distância), o Lampejo (um impulso que atravessa múltiplos adversários) e a Invasão (que transforma inimigos em aliados por um curto período).
O jogo fica um tantinho mais acessível à medida que desbloqueamos esses poderes, mas nunca nos sentimos realmente no controle da situação – mesmo porque as habilidades demoram para recarregar, e dificilmente conseguimos usá-las mais do que uma ou duas vezes em cada batalha.
FRUSTRANTE E REPETITIVO
Pode ser redundante dizer isso agora, mas Ghostrunner tem uma dificuldade absurda – quase tão absurda quanto a dificuldade de achar alguém que consertasse meu pen drive em um sábado à tarde. Quando digo que ele é frustrante e repetitivo, quero dizer que ele é muito frustrante e muito repetitivo; isto é, muito repetitivo e muito frustrante.
Vencer cada desafio (especialmente os combates, mas também as plataformas) requer destreza, habilidade, uma paciência de Jó e um bocado de sorte. Sorte, sim: porque muitas vezes nem você vai saber direito como é que conseguiu passar daquele diabo de trecho depois de trocentas tentativas. E as palavras “na cagada” (perdoe meu francês) vão rapidamente piscar na sua cabeça como um painel de néon em curto-circuito, antes que você passe para a próxima fase e comece a morrer de novo.
Sinceramente (e é claro que eu não mentiria para você), esse tipo de jogo não é pra mim. Essa vibe de “git gud” é coisa de jovem desocupado que passa o dia comendo cheetos e batendo ponto no XVideos. Eu jogo pra me divertir, mané! Se fosse para repetir a mesma coisa 200 vezes, eu ainda estaria trabalhando naquele freela – que aliás finalizei em dois dias, movido exclusivamente pela força da raiva.
REPETITIVO E FRUSTRANTE
Mas eu entendo que Ghostrunner foi feito justamente para essa galerinha do “fique bom ou morra tentando”. E tudo bem! Tanto que a nota desta análise não refletiu minhas preferências pessoais – ainda que, você sabe, seja essa a premissa do DELFOS. O lance é que, mesmo não sendo meu tipo de jogo, reconheço que ele se dá muito bem naquilo que faz, entregando um resultado satisfatório para os amantes do gênero – isto é, para aqueles que buscam regozijo no sofrimento.
E olha só: eu até consegui entrar na proposta do game e comprar a ideia que ele tentava me vender – o que se comprova pelo fato de que terminei o jogo, contrariando minhas próprias expectativas. Só que passei muito mais tempo xingando o desenvolvedor do que me divertindo. Pra você ter ideia, morri 2.249 vezes em pouco menos de 12 horas. Uma média de três mortes por minuto, ou uma morte a cada 20 segundos!
Trata-se claramente de um produto feito para jogadores masoquistas e para a comunidade speedrunner. De fato, esta última encontrará aqui uma genuína carta de amor, que já vem embalada para presente e pronta para satisfazer a necessidade desse povo de se provar melhor e mais rápido que o coleguinha do canal ao lado. Inclusive já tem gente por aí terminando o jogo em incríveis 45 minutos – e só me resta pensar que tipo de vida social tem um maluco desses.
PASSA A RÉGUA!
Pra finalizar, devo dizer que fiquei bem decepcionado com os gráficos. Quando vi gameplays do pessoal jogando no PC, chegou a escorrer um fiozinho de baba pelo canto da boca (e de onde mais seria?). Tinha mó pinta de next-gen. E de fato, pelo que pude constatar, as versões de PC e XBox One estão garbosas. Como eu joguei no PS4 Pro, os gráficos por aqui marejaram meus olhos, mas com lágrimas de dor.
As texturas são mais feias que bater na mãe, os contornos estão serrilhados e tudo o que a vista alcança (não é muito) parece rodar em uma resolução abaixo da média – como se eu estivesse assistindo ao vídeo em 480p de um jogador muito ruim pelo YouTube. E, pelo visto, esse é um problema particular do PS4.
Também encontrei algumas quedas violentas na taxa de quadros, o que adicionou uma camada extra de dificuldade e quase me fez desistir no meio do caminho. Mas foram ocasiões que se limitaram às fases finais – imagino que por conta da maior quantidade de inimigos, projéteis e efeitos de luz em um mesmo ambiente. Seja como for, suponho que esse tipo de problema está dando as caras apenas nos consoles, e mais especificamente no brinquedinho da Sony. Então esteja avisado, caso você pretenda adquirir essa (a)versão do game.
Ah! E o jogo está todo legendado em nosso idioma, o que a essa altura nem deveria ser um elogio – principalmente se considerarmos que o Brasil é um dos maiores consumidores desse tipo de mídia no planeta.
CORREDOR FANTASMA
Ghostrunner é uma experiência frustrante e repetitiva; repetitiva e frustrante – como uma frase que reaparece exaustivamente dentro de um texto, mesmo depois de já termos entendido o recado. Se você curte videogames que te põem para repetir a mesma coisa um trilhão de vezes e não tem nada melhor pra fazer da vida, como lavar a louça ou ler um livro, tenho uma boa notícia: esse é o seu jogo!
Do contrário, se você preza por narrativas sofisticadas, tramas envolventes e personagens complexos, talvez seja melhor aguardar aquele outro jogo cyberpunk, na esperança de que ele seja lançado em algum momento antes de 2077.