Sejamos sinceros: quando um camarada como Alan Moore diz, com todas as letras, que alguém é “o responsável por dar inteligência aos quadrinhos”, é sinal de que o objeto de sua afeição realmente deve ser bom no que faz. Se você, caro delfonauta, nunca ouviu falar no escritor e desenhista estadunidense Will Eisner, é bom saber que está mais do que na hora de começar.
Principal responsável pela elevação dos gibis ao status de “arte”, Eisner introduziu a metalinguagem e os recursos cinematográficos nos quadrinhos, indo muito além dos requadros óbvios utilizados pelos quadrinistas da época, brincando (e revolucionando) com letras, balões, onomatopéias e todos os outros elementos gráficos do gênero, permanecendo atual até mesmo para os dias de hoje – e olha que estamos falando de um sujeito que começou a carreira na década de 40, permanecendo em intensa atividade criativa até a sua morte, em 2005. Dava para fazer uns 450 Rob Liefeld com este simpático velhote careca.
Este é Will Eisner. E acredito que, apesar do resumo em um único parágrafo, dá para entender a importância quase sagrada do lançamento nacional de A Força da Vida, uma das poucas obras que ainda permanecia inédita em nosso país. Trata-se de uma espécie de continuação oficial de outros dois clássicos, Um Contrato com Deus e Avenida Dropsie: A Vizinhança.
Vamos deixar de lado o bom-humor super-heroístico de The Spirit, sua criação mais famosa e que deve chegar aos cinemas em breve pelas mãos de um de seus maiores seguidores, Frank “Narinas” Miller. Não, senhor. Eisner acerta de verdade mesmo e expõe toda a sua genialidade quando vai ao limite de sua própria biografia, revelando os pequenos dramas humanos com uma precisão quase cirúrgica, unindo contundência e delicadeza de maneira que uma lágrima roubada é inevitável no rosto de seus leitores.
Em A Força da Vida, o cenário são aqueles mesmos velhos conhecidos cortiços da Avenida Dropsie, no Bronx nova-iorquino. Estamos nos anos 30, em plena Depressão pós-Quebra da Bolsa de NY. O desemprego atinge taxas altíssimas, e nestas ruas tomadas pelo lixo (humano ou não), interligam-se as histórias de imigrantes judeus, italianos, rabinos, mafiosos de araque, trambiqueiros, solteironas, casamenteiros e demais tipinhos facilmente identificáveis em qualquer perímetro urbano.
Eisner cresceu justamente nesta região, e não poderia ser melhor narrador para todas as histórias cujo título em português é a mais pura definição da pergunta que o autor deixa no ar, permeando boa parte da ambientação: afinal, qual é a força que faz os seres vivos terem vontade de viver, de continuar lutando para seguir em frente?
O velho marceneiro Jacob, em busca de um emprego qualquer depois da finalização do anexo da sinagoga local, tem um diálogo definidor com uma barata no beco ao lado de sua casa, logo na abertura do volume. A figura do inseto com um pequeno ciclo de vida, mas cuja espécie resiste às mais rigorosas intempéries há séculos neste pequeno planetinha azul é usada recorrentemente. No entanto, Jacob é apenas um dos muitos personagens que ajudam a definir este mote, entre manchetes e recortes de jornais que dão uma melhor visualização dos tempos difíceis que os ianques enfrentaram pouco antes da Segunda Guerra Mundial, quando a sombra do nazismo na Alemanha começava a se espalhar por diversos países.
Temos o homem preso em sua própria paranóia que passa a vida trancafiado em casa, o ricaço que vira pobretão e que tenta reconstruir sua vida servindo aos judeus nos dias santos, o siciliano que terá os favores cobrados pela temível Mão Negra, os moleques que não querem nada com os estudos religiosos e preferem viver imaginando os tiroteios de filmes de caubóis – e até um certo Willie, aspirante a desenhista que se vê dividido entre a família e os recém-descobertos ideais revolucionários comunistas dos sindicatos – e que, reza a lenda, seria inspirado na versão adolescente do próprio Eisner.
Leitura rápida, gostosa, descomplicada e inteligente. Quer coisa melhor? Ou você acha que existiria qualquer Garth Ennis, Grant Morrison, Brian Michael Bendis, Mark Millar, Neil Gaiman e demais gênios da escrita quadrinística se não fosse por Eisner? Reverencie o mestre. Agora mesmo. Vamos, vamos, está esperando o quê?