Este é o tipo de filme que não dá para resenhar sem uma análise da parte mais técnica. No assunto do convite para a cabine, já estava lá o anúncio de que este é o “primeiro longa-metragem filmado com máquina fotográfica”. Imediatamente comecei a imaginar porque diabos alguém filmaria um longa com máquina fotográfica. Que vantagem isso poderia trazer?
Bom, segundo o assessor da Playarte, parece que a decisão foi feita para facilitar na portabilidade. É mais fácil carregar a câmera pelos cômodos da casa se não for um dos tradicionais trambolhões usados no cinema. Felizmente, a qualidade da imagem não foi tão prejudicada e está bem acima do aceitável e bastante superior a filmes como Mar Aberto, e até mesmo ao clássico nerd O Balconista. Em outras palavras, dá para assistir numa boa.
“Mas por que o diretor Gustavo Rojo precisava de tamanha portabilidade?”, pergunta o sempre curioso delfonauta. Porque a ideia era fazer um único plano-sequência de 78 minutos.
Plano-sequências ou, para quem não sabe o que é, “filmes de uma cena só”, não são novidade. Em 1948, Alfred Hitchcock fez o tremendão Festim Diabólico, um excelente filme, que se torna ainda melhor por ter sido filmado dessa forma. Porém, o mestre do suspense foi limitado pela tecnologia, pois os rolos de película permitiam cenas de no máximo, aproximadamente, 11 minutos. Em outras palavras, era necessário ter um corte sempre que o rolo fosse trocado. Assim, ele disfarçou os cortes usando truques como aproximar a câmera de um lugar escuro ou algo do tipo e fez o filme em 12 planos-sequências.
Hoje os cineastas podem usar tecnologia digital, então essa limitação não existe mais. Ainda assim, é um recurso raramente utilizado pelos cineastas atuais. Particularmente, eu nunca assisti a nenhum longa-metragem que seja realmente “uma cena só”. Mais recentemente, já vimos outros tipos de planos-sequência, como um episódio especial da sitcom Mad About You (um em que tudo rola do lado de fora do quarto da filhinha deles) ou aquele clipe do Ok Go que todo mundo adora.
É fácil entender o motivo para isso ser tão raro. Imagina que a turminha do Ok Go tinha que recomeçar tudo cada vez que um deles tropeçava. E eles devem ter tropeçado pra caramba. Agora imagine isso em um longa-metragem. Não só os atores podem errar, mas se o sujeito mexer a câmera muito rápido ou o carinha que segura o microfone ficar no lugar errado e aparecer na tela, a filmagem inteira teria que ser reiniciada.
Assim, Gustavo Vermelho filmou A Casa como se fosse uma cena só. E fez isso 14 vezes. E agora vem a parte brochante: ele não escolheu usar a melhor, mas fez uma montagem com os melhores momentos, perdendo a chance de ser um longa-metragem em um único plano-sequência real.
Sim, ele usou as mesmas técnicas do Hitchcock para esconder os cortes, e elas funcionam bem melhor do que no filme de 1948, pois a maioria delas é praticamente imperceptível. Mesmo procurando por elas, encontrei apenas umas quatro ou cinco, o que mostra o excelente trabalho de montagem. Ainda assim, teve montagem, e seria mais legal se não tivesse.
De qualquer forma, o fato de serem cenas longuíssimas já muda totalmente a experiência de assistir ao filme – para melhor. A Casa é uma historinha pra lá de básica sobre uma garota e seu pai que vão passar a noite numa casa e logo percebem que não estão sozinhos ali.
Básico, né? Mas a filmagem muda tudo. Até planos banais, como o vilão aparecendo de relance em segundo plano para depois desaparecer ficam muito mais legais dessa forma (é uma pena que tenham repetido isso em umas 15 oportunidades no decorrer do longa, aniquilando totalmente o impacto das primeiras vezes). Ou então quando os personagens se separam e a câmera segue um deles para depois o outro aparecer machucado, é muito legal pensar que, enquanto a cena estava sendo filmada, o outro ator correu para a maquiagem e teve que ter o trabalho feito a tempo para voltar à cena.
E o diretor mandou realmente bem, mudando de cômodos, pegando ângulos nada óbvios e no geral acompanhando sempre o que a garota está fazendo, o que nos faz pensar quão difícil deve ter sido para a atriz em questão. Afinal, ela tinha que atuar, sem erros e sem folga, por 80 minutos seguidos. E conseguiu, pois sua interpretação é muito boa.
Infelizmente, nem toda a qualidade técnica do mundo pode tornar bom um filme ruim. E é isso que A Casa é. Festim Diabólico é um filmaço, e continuaria sendo um filmaço mesmo se não fosse em plano-sequência. Já A Casa é péssimo e, se o plano-sequência o torna diferente e demonstra boas ideias, sem dúvida não é o suficiente para fazer valer o ingresso.
Absolutamente nada acontece neste filme. O que temos aqui, na real, são 80 minutos da garota andando pela casa e da câmera seguindo ela. Para dar o clima de terror, inventaram que ela estava sofrendo alucinações, o que permite aqueles tradicionais “sustos bu”, como um bicho pulando de algum lugar ou uma mão que não existe encostando nela. E basicamente esses “sustos bu” são tudo que você vai ver no longa. Não dá medo nenhum, e sequer consegue assustar.
Para jogar tudo no lixo de vez, decidiram colocar uma viradinha tão previsível que você a vê chegando mais de 30 minutos antes da hora – e ainda assim não faz sentido nenhum. Afinal, a câmera seguiu a garota o tempo todo, nós vimos tudo que ela fez nesse tempo. =)
Plano-sequência, no final das contas, é uma ferramenta, tal qual o 3D. Ambos podem ser divertidos por cinco minutos (mais um motivo para o primeiro ser muito mais utilizado em videoclipes) e podem ser usados para potencializar a visão do diretor de um filme. Mas, por si só, nenhum dos dois é suficiente para levar um filme nas costas.
CURIOSIDADES:
– Se você ficou interessado em plano-sequências e nunca viu um, com certeza já decidiu ir atrás de Festim Diabólico. Abaixo vão alguns outros filmes que podem te interessar (indicados pela Wikipédia =D), realmente filmados em um único plano-sequência, mas admito que ainda não assisti a nenhum deles.
– Timecode (2000), de Mike Figgis – são quatro planos-sequência de 97 minutos cada, rodados e exibidos ao mesmo tempo, numa tela dividida em quatro.
– A Arca Russa (2002), de Alexander Sokurov – um único plano-sequência de 96 minutos.
– Ainda Orangotangos (2008), de Gustavo Spolidoro – um único plano-sequência de 81 minutos. E sim, é nacional.
– Se você assistiu a esses, ou a algum outro e gostou, indique para nós nos comentários.