Análise Shenmue 3: reverência pelo mundano

Shenmue, lançado em dezembro de 1999 para o Dreamcast, é lembrado com carinho por muita gente. Mais do que isso, ele é um dos jogos mais influentes da história. E sua influência se deve justamente a quão mundano ele é. Em uma mídia povoada por heróis que salvam mundos em histórias épicas, Shenmue coloca o jogador no papel de um jovem japonês. Embora ele esteja em uma jornada de vingança, boa parte do tempo, como qualquer pessoa, ele passa trabalhando para faturar uns trocados ou em algumas atividades de lazer.

Shenmue 2 saiu em setembro de 2001. Para efeito de comparação, GTA III, jogo que popularizou o paradigma de mundo aberto, saiu em outubro de 2001. Shenmue estava à frente de seu tempo, e é a definição de um jogo vanguardista. Shenmue 3, que sai em novembro de 2019, após uma campanha de financiamento coletivo extremamente bem sucedida, não evoluiu com a indústria que ajudou a criar. Para o bem ou para o mal, ele tem todas as idiossincrasias que ajudaram a tornar a série tão cult.

SHENMUE 3

Em Shenmue 3, você continua a história iniciada 20 anos atrás. Um exemplo das idiossincrasias supracitadas é a jogabilidade da investigação, algo importantíssimo no jogo. É comum você precisar investigar um ambiente, o que envolve abrir e fechar gavetas. Uma por uma.

Isso é o que você deve fazer nestes casos:

1 – Segurar L2 para ativar a visão em primeira pessoa.

2 – Mirar com a alavanca direita na gaveta que deseja abrir.

3 – Apertar X para aproximar a câmera da gaveta escolhida.

4 – Apertar X novamente para abrir a gaveta.

5 – Apertar X uma terceira vez para interagir com o que tem dentro da gaveta, em geral para ouvir algo tipo “isso não é importante”.

6 – Apertar bola para fechar a gaveta.

7 – Apertar bola para afastar a câmera da gaveta escolhida.

Repita estes sete passos para cada gaveta, em um processo que leva de 20 a 30 segundos para cada uma. Algumas dessas cenas têm 30 ou mais gavetas. E eu não sei dizer se isso é fato ou se eu só tive azar, mas aparentemente o que você procura só aparece depois de ter aberto 90% das gavetas disponíveis.

Em busca de realismo, Shenmue 3 acaba ficando mais complicado do que a realidade. Afinal, todos nós conseguimos abrir duas ou mais gavetas ao mesmo tempo. Ou seja, Shenmue 3, assim como os anteriores, exige uma dose cavalar de saco. Porém, ele não está mais na vanguarda, mostrando o caminho que os jogos podem seguir. Pelo contrário, ele tem uma devoção absurda pelo que Shenmue fez em 1999. Isso pode fazer sentido, considerando que é um jogo pago pelos fãs e feito para eles, mas ao mesmo tempo ele dificilmente vai apetecer qualquer pessoa que já não tenha uma afinidade com a série.

INFLUENCIADOS

É fácil ver a influência de Shenmue nos dias de hoje. Red Dead Redemption 2 tem uma fascinação igualmente alta pelo mundano, também exigindo que cada gaveta seja aberta individualmente. Porém, ele faz isso em uma estrutura mais moderna, o que o impede de parecer simplesmente um simulador de perda de tempo.

Em determinado ponto de Shenmue 3, você vai ficar em um quarto de hotel. A recepcionista dá a chave e fala o número do quarto. Imediatamente eu deduzi que o quarto que procurava seria o mais distante da entrada. E não deu outra. Absolutamente tudo em Shenmue 3 é projetado para levar o máximo de tempo possível.

Na época do lançamento, Shenmue era uma verdadeira superprodução. Era realmente o equivalente da época a Red Dead Redemption 2. Obviamente, este não é o caso em Shenmue 3. Ele faturou apetitosos sete milhões de dólares em sua campanha de financiamente coletivo, mas isso é merreca perto do orçamento da Rockstar.

Ainda assim, Shenmue 3 é um jogo esteticamente muito agradável. Os cenários são artisticamente lindos e cheios de cores vivas. As músicas tipicamente orientais também são bonitas e contribuem para o clima pacífico da coisa toda. Os personagens têm um visual relativamente fiel a suas contrapartes do Dreamcast. Ou seja, são bem estilizados e nada realistas, mas eu gosto do estilo. É uma pena que o ato de jogar literalmente me fez sofrer.

DOOORRRRRR!

Um bom tempo atrás, alguém me perguntou porque eu não gostava de jogos de futebol. Minha resposta foi que eu não via graça em fazer em videogame o que eu posso fazer na vida real. E Shenmue é praticamente um simulador do tédio e do grinding da vida real.

Lembra que eu falei do hotel? Você precisa pagar cada diária nele. Cada dia em Shenmue 3 dura cerca de uma hora de tempo real. Então a cada uma hora de jogo, você precisa dar um jeito de faturar dinheiro suficiente para pagar o hotel. Você faz isso em minigames que simulam trabalhos braçais, como cortar madeira.

Os minigames em Shenmue são bastante numerosos, mas igualmente simples. Em geral, basta apertar o X no tempo certo, ou mover uma das alavancas de acordo com o que o jogo manda. E você é obrigado a fazer boa parte deles. Não só os de trabalho braçal, para ganhar dinheiro, como também para treinar. Afinal, ocasionalmente a história de Shenmue 3 vai colocá-lo contra bandidos mal encarados. E, se você não fez grinding suficiente no dojo, vai acabar apanhando.

EYE OF THE TIGER

Sabe como a maioria dos filmes passa pelo treinamento com uma montagem empolgante e inspiradora? Pois Shenmue 3 abraça com força o tédio de se fazer exercícios. Segure uma posição por dois minutos. Pegue dez galinhas. Soque uma madeira até o jogo dizer chega. É gloriosamente entediante.

O treinamento, assim como os trabalhos, não são opcionais. Mesmo na dificuldade mais baixa, vendida como “ideal para quem só quer curtir a história”, não dá para vencer as lutas sem treinar bastante.

E tem outra, seus pontos de vida são constantemente drenados ao longo do dia. Treinar ou lutar faz com que eles diminuam mais rapidamente. Quando sobram apenas três, eles passam a se recuperar sozinhos, mas isso significa que você não pode mais correr. Ou melhor, você corre por cinco segundos e anda por 15, até eles se recuperarem. Para evitar isso, você deve comer. E comida custa dinheiro. Ou seja, mais trabalho.

Assim, como na vida real, você fica preso neste grinding de sustentação da vida, usando o pouco de tempo que resta em cada dia para de fato avançar a história. E o tempo é apertado. Deu nove da noite, o personagem é imediatamente transportado para o quarto.

E daí entra o que eu falei sobre os jogos de futebol. Se eu quiser investir uma hora do meu dia em fazer exercícios, é muito mais negócio fazer isso na vida real, e assim receber os benefícios que vêm com isso, ao invés de simplesmente conseguir avançar a história de um  jogo de videogame.

LAZER

Há também atividades de lazer, como fliperamas e apostas (onde dá para ganhar dinheiro mais rápido do que trabalhando). Tudo isso, claro, custa dinheiro. E como tempo e dinheiro são limitados em Shenmue, eu apenas experimentava cada atividade uma vez.

Eu passei um bom tempo apostando nas corridas, onde em geral basta martelar os botões para ganhar, sem depender tanto da sorte. Ainda neste caso, a coisa é deveras complicada. Pensa que dá para apostar em dinheiro e ganhar em dinheiro? Não, para apostar, você deve comprar fichas. Quando parar de jogar, deve trocar suas fichas por prêmios em outra loja (que fica em outro ponto da cidade), e daí vender estes prêmios em ainda outro lugar por dinheiro. É um processo desnecessariamente trabalhoso, como tudo em Shenmue.

HISTÓRIA

Mesmo o modo história dá trabalho. Por exemplo, em determinado momento, meu objetivo era mostrar uma foto para os cidadãos, na esperança de que alguém o reconhecesse. Mas a cidade é enorme, e há literalmente centenas de NPCs, sem nenhuma dica de com quem falar. Sem guias existentes no momento em que jogava isso, eu levei literalmente três dias (cerca de três horas em tempo real) simplesmente para perguntar para o NPC correto. Talvez você dê sorte de perguntar direto para ele e avançar rapidamente, mas eu estava literalmente a ponto de desistir quando o fulano me respondeu.

Em outro caso, eu precisava encontrar um membro VIP de um cassino. Falei com alguém, que disse que os VIPs eram ricos. Imediatamente matei a charada. Tinha um casal no meu hotel que tinha sido apresentado como rico. Fui bater no quarto deles, mas isso não era uma opção. Apesar de eu ter matado a charada na vida real, e saber o que fazer, eu precisava falar com um NPC específico, que apontaria especificamente meus colegas de hotel como pessoas ricas. E lá se vai mais tempo que eu nunca vou recuperar.

RESPEITE MEU TEMPO

Eu falo muito por aqui de como os jogos devem respeitar o tempo do jogador. E Shenmue 3 é um jogo construído especificamente para consumir muito tempo. Sem dúvida há espaço para uma narrativa mais lenta nos games (o sucesso de Red Dead Redemption 2 que o diga). E eu fico feliz que Shenmue 3 exista, e que os fãs da série possam continuar a história – ainda que, por incrível que pareça, este não a conclua, terminando em um cliffhanger. Mas ele definitivamente não é para mim.

É um caso comum em jogos bancados por financiamento coletivo. A busca pela nostalgia costuma levar para a criação de coisas voltadas aos fãs e apenas aos fãs. Falei um pouco disso em um caso parecido, a resenha de Broken Age. Naquele caso, eu era um dos fãs sedento por mais jogos daquele gênero, mas ainda assim questionei o quanto ele poderia se sustentar atualmente. Shenmue 3 tem muito de um point-and-click, mas é muito mais trabalhoso e inacessível. Ainda mais do que Broken Age, parece um caso que pode agradar quem jogou o clássico lá no Dreamcast, mas que hoje em dia parece uma relíquia. E uma bem chata.