O Netflix não para. Depois do sucesso de produções próprias como House of Cards, Orange is The New Black, Demolidor e Sense8 , a plataforma de streaming lançou a primeira temporada de Narcos no seu já tradicional modelo para maratonar.
A produção é especial para os brasileiros, uma vez que é produzida pelo José Padilha e estrelada pelo Wagner Moura, dobradinha celebrada no blockbuster nacional Tropa de Elite e sua continuação.
Narcos conta a história do Cartel de Medellín, um grupo de narcotraficantes responsável por boa parte da escalada de violência e a instabilidade política que marcou a Colômbia durante a década de 80. Tendo Pablo Escobar como figura mais ilustre.
Habitualmente, debatemos sobre os universos compartilhados dos heróis da Marvel e DC que invade os cinemas e a televisão. Se considerarmos Narcos como parte de uma espécie de um universo compartilhado de uma realidade nada heróica, esta certamente seria a história de origem da guerra às drogas.
Meu primeiro contato com um filme do José Padilha foi o excelente documentário sobre o episódio do Ônibus 174. Ali ficou claro a partir da trajetória de Sandro como a sociedade contribui para a construção de seus próprios monstros. Naquela ocasião, o mesmo menino vítima da chacina da candelária veio a se tornar um criminoso violento e responsável por um sequestro que mobilizou toda a cidade do Rio de Janeiro.
O Tropa de Elite foi concebido como uma crítica à violência policial com o combate ao tráfico de drogas como pano de fundo, mas acabou sendo absorvido pelo grande público como uma espécie de elogio à tortura. A franquia encontrou a redenção na sua sequência ao abraçar o diálogo indissociável entre violência urbana e direitos humanos.
Pois bem, o traço comum destas obras é toda a violência derivada do discurso prático de eleição de um inimigo pelas autoridades e a necessidade de combatê-lo custe o que custar. Custe dinheiro público, vidas, restrição de direitos etc.
AL CAPONE NUNCA TEVE TANTO DINHEIRO
Narcos constitui-se como um legítimo recorte deste recurso argumentativo prático e recorrente ao longo da história para justificar atitudes mais enérgicas do poder público. Especificamente, o discurso de guerra às drogas e ao narcotráfico professado por Ronald Reagan em paralelo à caça aos comunistas durante a Guerra Fria.
Já diz a narração do personagem Steve Murphy nos minutos iniciais: é uma história complexa demais para definir quem são os bandidos e os mocinhos. É óbvio que Pablo Escobar está longe do estereótipo de good guy. Tendo a esperteza de se autoproclamar líder carismático e apropriar-se de um sistema corrupto em seu favor usando o dinheiro do tráfico e intimidação.
Em oposição, os agentes do DEA (agência norte-americana de combate ao narcotráfico) buscam respaldo em uma lógica interventora para se articular com o governo colombiano. O combate ao narcotráfico só se torna conveniente para os Estados Unidos quando o fluxo de dinheiro em direção à Colômbia começa a chamar a atenção. Narcos em momento algum tenta glorificar o trabalho dos americanos e das autoridades locais. Não há um maniqueísmo simplório entre traficantes e autoridades. A máxima de que os mocinhos às vezes precisam fazer coisas ruins é radicalizada no retrato fiel dos atos de tortura e demais excessos cometidos pelas autoridades.
ESSE GATO É DEA
O ponto de partida da história é justamente quando o agente Murphy é designado pelo DEA para atuar na Colômbia com seu parceiro Javier Peña (conhecido por alguns como Oberyn Martell). Onde ambos abraçam a cruzada para desmantelar a rede formada pelo Cartel de Medellín.
O produto final não fica abaixo do que já foi entregue pelo Netflix. A dinâmica da dupla Murphy e Peña é o ponto alto da série, junto com a atuação de Wagner Moura. A figura complexa de Escobar permitiu ao ator explorar várias facetas, transitando pelo criminoso, empreendedor, homem de família, líder carismático e terrorista. Pelo o que andei lendo, ele aprendeu espanhol para o papel e o resultado é impressionante. O perigo de interpretar o notório traficante já foi retratado de forma bem humorada em Entourage .
A injeção de sangue latino nas atuações auxilia na abordagem realista dos fatos e evita a criação de estereótipos e caricaturas. A violência brutal combinada com o uso de imagens documentais também contribui neste sentido. Por outro lado, a série peca no excesso do formato gato caçando rato típico de dramas policiais. Alguns episódios parecem uma versão adulta do Coiote e Papa-Léguas.
Narcos é um bom retrato da origem daquilo que veio a se tornar a guerra às drogas e contribui para refletir sobre o tema. O tom realista se afasta do drama pessoal de Breaking Bad ou da tonalidade tragicômica de Weeds. O seriado é só uma amostra de todo o aparato mobilizado por órgãos estatais em oposição ao poder e riqueza acumulado por criminosos. Sendo um bom material para reflexão em tempos de amplo debate acerca da descriminalização do porte e uso de drogas.