Finalmente parece que os filmes nacionais estão evoluindo e podem ser chamados de cinema de verdade. Já são duas vezes que um longa tupiniquim teve posição de destaque na minha lista de melhores do ano e, embora ainda soframos com nossa mania de falar sempre dos mesmos temas, algumas coisas diferentes estão surgindo e a qualidade em geral, em especial das atuações, anda aumentando muito. Olhos Azuis até tem reflexos desses temas, como o nordeste e diferenças sociais, mas os aborda de forma bem criativa e interessante.
São duas linhas temporais diferentes, ambas ancoradas na figura de Marshall (David Rasche, excelente), que trabalha na fiscalização do aeroporto estadunidense, impedindo os indesejáveis de entrar no país. Por indesejáveis, entenda basicamente sul-americanos e árabes. O cara é um dos personagens mais odiosos da história do cinema, dando sinais de sadismo e racismo a todo momento. É complicado ter um protagonista desses, mas mesmo assim o filme se sai bem.
Numa das linhas temporais, acompanhamos o último dia de Marshall no seu trampo antes de ele se aposentar. Na outra, que acontece dois anos depois, ele já está aposentado e está no Recife, procurando por uma menina, que a gente logo descobre que é filha de um dos “indesejáveis” do seu último dia.
A parte do aeroporto é nada menos que excelente. Marshall e seus dois colegas (uma mulher tão sádica e doente quanto ele e um de ascendência latina que ocasionalmente demonstra alguma compaixão) decidem escolher a esmo quais dos viajantes vão atazanar e humilhar por simples diversão, sadismo e racismo. E são essas humilhações que presenciamos. No grupo dos “sorteados”, temos um brasileiro, dois poetas argentinos, uma bailarina cubana e um time de Tae Kwon Do de Honduras. E o nível da humilhação que cada um desses vai sofrer depende apenas da sua beleza física e do seu país de origem.
E o negócio fica realmente tenso. Se o guardinha latino ainda mostra sinais de compaixão ocasionalmente, os outros dois estão entre os personagens mais diabólicos e cruéis que já vi na tela grande. E, como brasileiros que somos, fica dificílimo não se ofender com boa parte dos seus comentários. Até porque sabemos que eles correspondem exatamente à forma como os gringos nos veem.
Nessa narrativa, as coisas chegam a pontos tão pesados que beiram um filme de terror. E é um prazer finalmente ver um terror tenso e assustador em algo de origem nacional.
O grande problema – e o motivo pelo qual esta resenha não está ilustrada com o grandioso e cobiçado Selo Delfiano Supremo – é justamente por causa da outra narrativa. Afinal de contas, quando você está acompanhando uma história tensa e interessante, a pior coisa que pode acontecer é cortar para outra muito inferior – no caso, um road movie sem grandes novidades.
Cada vez que a narrativa muda para o Brasil, a sensação de coito interrompido é frustrante. Se você assiste Lost, já deve estar familiarizado com isso. Sabe quando você está completamente absorto nos mistérios da ilha e na violência de seus habitantes e, de repente, vem aquele barulhinho característico e você é transportado para cenas das férias do Jack na Tailândia ou das cafajestadas do Sawyer? Pois é, aqui é igualmente irritante e igualmente desnecessário.
Isso até me lembra um episódio de Friends em que o Ross explica porque os homens não investem tanto tempo nas preliminares fazendo um paralelo com o comediante que abre os shows do Pink Floyd: “não é que não gostamos do comediante. Só não foi por isso que compramos o ingresso”.
De fato, não é que a parte road movie seja ruim, mas ela causa uma quebra absurda no gênero. De uma história de terror, vamos para uma fofinha de um homem procurando uma criança através de lugares pobres do nosso país. Não cola… Até poderia render um bom filme, se desenvolvida por si só, mas o personagem demonstra ser tão mau, tão sacana e tão FDP na outra história que nenhuma tentativa de redimi-lo vai chegar a lugar nenhum. Qualquer espectador assistindo isso só vai querer ver o sujeito morrendo de morte matada e sofrida, e nenhum sinal de arrependimento por parte dele mudaria isso.
Claro, o motivo pelo qual ele está procurando a filha do seu desafeto só é explicado no final do filme, mas qualquer um será capaz de imaginar com razoável segurança o porquê da viagem dele. E isso diminui o impacto quando a narrativa que importa ficar realmente tensa. Afinal, se o Marshall aparece em cenas que acontecem dois anos depois, não é difícil imaginar que, por mais besteiras que faça, ele não vai morrer nem ser preso.
Próximo ao final, na parte em que alguém saca uma arma, temos alguns dos melhores momentos da cinematografia nacional e boa parte do impacto é diminuído por causa dessa narrativa dupla. Não fosse isso, o espectador ficaria completamente perdido, sem imaginar o que diabos iria acontecer, elevando a tensão da coisa toda à vigésima potência. Da forma que é, no entanto, você já sabe o que vai acontecer… e a tensão se esvai. Assim como o Selo Delfiano Supremo.
Porém, nem mesmo nos seus momentos no Brasil, Olhos Azuis é ruim. Pelo contrário, ele varia apenas do “muito bom” ao “mano, isso que é filme!”. Dessa forma, este é um dos melhores filmes brasileiros que já tive o prazer de ver e uma aula para os cineastas que se contentam com a mediocridade. É diferente, é assustador e é tenso. E merece ser visto no cinema. Quem não assistir vai ter que sair do hall.