Vamos discutir Bioshock Infinite

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Algumas horas antes de escrever este texto, eu terminei Bioshock Infinite. Conforme esperado, é agora que o modo multiplayer do jogo começa: as conversas sobre a história e o final. Isto não é uma resenha, mas alguns comentários sobre o que achei interessante no novo Bioshock, e espero que a matéria vá muito além do que eu vou escrever aqui, pois quero ler as suas próprias teorias e curiosidades.

Acredito que não preciso nem dizer, mas spoilers malvados habitam este texto a partir deste ponto. Só continue lendo se já terminou Bioshock Infinite ou se não se importa com estragões.

UMA BREVE COMPARAÇÃO

Admito que Bioshock Infinite estava me decepcionando um pouquinho quando estava perto de terminar. Não o considerei ruim, de forma alguma, mas ele estava bem longe da preciosidade que foi o primeiro Bioshock. Embora felizmente tenham se livrado daqueles minigames chatos de pesquisa e de hackear, eu estava sinceramente cansado de ficar bisbilhotando mesas, cofres e caixas em busca de comidinhas, salt e outros itens.

Para completar, a cidade Columbia em si é bem menos inspirada do que Rapture. Toda a divulgação foi feita em cenários abertos, com céus azuis, mas na realidade a maior parte do jogo se passa dentro de casas e cenários escuros. Particularmente, eu gosto mesmo é de jogar com apenas o céu acima de mim, e achei que Bioshock Infinite seria assim o tempo todo. É engraçado, eu sinto que em geral as pessoas gostam mais de cenários assim, mas ao mesmo tempo as desenvolvedoras continuam sempre nos dando corredores escuros e apertados, ainda que mostrem o oposto em sua divulgação. Vai entender.

Além disso, Rapture dava aquela sensação de que a cidade em si era viva. É sensacional ficar parado, apenas ouvindo os barulhos da água nos dois primeiros Bioshocks. E lembra quando você já tinha liberado todas as Little Sisters de uma fase, e o Big Daddy ia até uma das casinhas delas para chamá-las e, quando nenhuma saia, ele parecia confuso e triste? Isso é mágico, e Infinite não tem momentos assim.

Ele tem outros momentos interessantes, no entanto. Por exemplo, gostei muito de quando apareceu um rasgo tocando uma música do Credence Clearwater Revival.

Quando isso acontece, seu personagem, Booker DeWitt, fala “eu nunca ouvi essa música”, ao que Elizabeth responde “acho que ninguém ouviu”. É óbvio que ninguém ouviu, o jogo se passa em 1912, décadas antes da música ser gravada. Mas daí, algum tempo depois, isso acontece:

Reconheceu a música que a menina está cantando? É a própria Fortunate Son, mano! Em uma versão extremamente triste, parecendo algo que escravos cantariam, mas ainda assim, é Fortunate Son. WTF, né? Como isso é possível?

Pois o jogo responde isso, quando, bem mais para frente, você entra na casa de um músico famoso de Columbia, e encontra uma gravação que diz que as músicas que ele ouve através dos rasgos que aparecem pela cidade estão rendendo dividendos. O tal músico talentoso está plagiando sucessos do futuro! Genial!

Tem também o arco dramático do Vox Populi. Escravos e pobres revolucionários, que sonham com um mundo melhor, mas que quando assumem o poder se tornam piores do que os tiranos que depuseram. Inteligente e tal, mas não é nada assim tão único ou criativo.

RYAN VS. COMSTOCK

Isso é bem legal e interessante, mas ainda é bem distante da profundidade filosófica dos primeiros Bioshocks. Logo no início do primeiro Bioshock, Andrew Ryan já começa a falar com você, demonstrando a filosofia objetivista do jogo. Aqui, o profeta Comstock não se dirige ao seu personagem com tanta frequência, e ele carece do carisma e da inteligência de Ryan. E isso tem um motivo narrativo. Se Rapture foi construída em cima de filosofia, e é habitada pelos maiores gênios da humanidade, Columbia é um antro religioso, racista e ufanista. E nada disso pode ser explicado com lógica.

Religião é algo que para a maioria das pessoas é emocional. É algo que se sente, não que se explica. Racismo é coisa de idiota. Ufanismo idem. Então embora os banheiros exclusivos para negros que encontramos em Columbia façam sentido dentro do contexto, não tem como dar uma explicação lógica ao estilo Andrew Ryan para eles.

O jogo usa bem desse salto de lógica logo no início. Afinal, você chega em Columbia, e a cidade parece ser perfeita. É um dia de festa, e uma rifa está rolando. Você vai andando pela cidade, curtindo o visual e as músicas, até que você vê que o prêmio da rifa era jogar uma bola em um casal inter-racial. Isso não precisa de explicação. Você não precisa de um discurso filosófico de Andrew Ryan para saber o que está acontecendo. Assim que o casal entra no palco para ser apedrejado, imediatamente o jogador percebe que há algo de podre em Columbia. Em Rapture, há mais espaço para desenvolvimento, pois diante das evidências, é muito mais fácil aceitar Comstock como um vilão puro e simples do que Andrew Ryan, uma vez que este último tem motivos totalmente lógicos para suas ações.

BIOSHOCK 2 VS. INFINITE

Se a Rapture do primeiro Bioshock era totalmente lógica, a evolução para o segundo jogo também o foi. Passamos do domínio da razão para o da emoção, e Ryan foi substituído por Sophia Lamb, que criou um culto de personalidade ao redor dela, mais ou menos como fez Comstock em Infinite.

Mas Sophia ainda estava em Rapture e, portanto, era uma das mulheres mais inteligentes do mundo. Ela tinha um sonho, o sonho de livrar o ser humano do livre-arbítrio e, assim, criar o primeiro “utopiano”, uma pessoa que agiria em favor do bem-comum, e não para benefício próprio. “Utopia não pode existir sem o utopiano, mas uma vez que o utopiano existir, a utopia virá naturalmente”, dizia ela. É uma abordagem intelectual para a iluminação e o objetivo da maioria das religiões. Comstock não parece ter um sonho. Ele quer ser venerado. E isso o torna um personagem menos intrigante, e mais próximo de um vilão tradicional.

A comparação é bem-vinda, pois as histórias de Bioshock 2 e Infinite são bem parecidas. Você é uma figura paterna (Delta/Booker) que vai a uma cidade isolada do resto do mundo (Rapture/Columbia), cidade esta dominada por um guia espiritual (Sophia Lamb/Zachary Comstock), para resgatar uma moça que está presa para servir ao profeta no futuro (Eleanor/Elizabeth).

Isso é especialmente curioso se você lembrar que Bioshock 2 foi desenvolvido pela 2K Marin, não pela Irrational, que criou o primeiro e Infinite. Fico em dúvida se a Irrational quis simplesmente ignorar o trabalho da 2K Marin e seguir a progressão lógica do primeiro Bioshock (de filosofia para religião) ou se, pelo contrário, eles intencionalmente quiseram contar a mesma história. A julgar pelo final de Infinite, tendo a esta última opção.

Aliás, lembra quando, há pouco, falei que estava um tanto decepcionado quando o final de Infinite se aproximava? Pois é, Bioshock começa a despejar sua filosofia e inteligência em você desde o início. Quando eu o estava jogando pela primeira vez, minha cabeça ficava em polvorosa. Talvez até por isso mesmo me incomodou bem menos ficar abrindo mesas e caixas para procurar comidinhas do que aqui, pois enquanto eu fazia essas tarefas chatas, estava pensando sobre as informações tremendonas que o jogo estava me passando.

Infinite, por outro lado, tirando alguns momentos inteligentes pontuais, como o das músicas, guarda toda a bomba filosófica para o fim. E pela lontra mutante de Stan Lee, delfonauta! Que fim!

O FIM

Aí em cima temos o final de Bioshock Infinite. Toda a história do jogo é contada sem cutscenes, e o final segue esta tendência, pois é totalmente jogável. Foi a partir do diálogo que rola em 4:35, que começa a explicar as dimensões paralelas, que o jogo subiu muito no meu conceito. “Nós nadamos em oceanos diferentes, mas aportamos na mesma margem”. Por quê? “Because it does, because it has, because it will”.

Sabe o que esta última frase me lembra? Watchmen. Não o filme, mas o gibi. Em especial, aqueles dois capítulos sensacionais centrados no Dr. Manhattan, que tiveram boa parte dos diálogos cortados no filme.

Os únicos personagens que são capazes de viajar entre as dimensões paralelas são os Lutece e a Elizabeth. Elizabeth consegue fazer isso porque, ao ter seu dedo cortado pelo portal interdimensional (em uma cena muito mais fofa do que pode parecer pela descrição), ela se tornou um habitante de duas dimensões. Os Lutece já são duas versões da mesma pessoa, que se encontraram e causaram tudo que vemos no jogo por estarem pesquisando a mesma coisa. E, quando tentaram assassiná-los, ambos acabaram virando praticamente um glitch do sistema.

Assim como os Lutece, o protagonista Booker e o vilão Comstock também são a mesma pessoa, separadas por uma única escolha: aceitar ou não o batismo. O Booker que aceitou o batismo mudou seu nome e, ao ver os rasgos interdimensionais, achou que eles eram mensagens de um arcanjo e começou a se considerar um profeta. O outro, ao negar o batismo, não viu outra forma de lidar com as atrocidades que cometeu a não ser se afundar no alcoolismo e em jogos de azar, o que eventualmente fez com que sua filha, Anna/Elizabeth, fosse entregue aos Lutece como o pagamento de uma dívida. Isso o deixou tão arrependido que ele marcou sua mão com as letras AD (Anna DeWitt), e Comstock usou esta marca para que seu povo identificasse Booker como o falso profeta, o inimigo que seria responsável pelo fim de Columbia.

Na história de Bioshock Infinite nós temos algumas opções. Jogar a bola no casal inter-racial ou no apresentador. Poupar ou matar Slate. Gaiola ou pássaro. Mas no final das contas, não interessa o que nós escolhermos, a conclusão é a mesma. O ponto que o jogo defende é que apenas em alguns momentos de nossas vidas nós realmente temos opção. E na maioria deles, o que escolhemos é irrelevante, pois as consequências serão semelhantes.

Os Lutece usam esses momentos de escolha para testar as diferenças entre as dimensões paralelas, e chegam à mesma conclusão que a Elizabeth fala no final: não interessa as diferenças, é tudo a mesma coisa. Lembra do momento da cara ou coroa, por exemplo, que dá a entender que aquela mesma situação já ocorreu mais de 100 vezes? Esta não é a primeira vez que Booker está em Columbia e, cada vez que você morre e acorda no escritório do protagonista, uma nova tentativa dos Lutece se inicia, uma nova dimensão paralela se abre. Será que é nesta dimensão que você trará o fim de Columbia, ou os Lutece terão que tentar de novo?

Passando para a vida real, nós podemos escolher algumas coisas. Em algum momento nos idos de 2003, eu escolhi criar o DELFOS. Essa minha escolha afetou a sua vida, mesmo eu não conhecendo você pessoalmente. Afinal, você está aqui agora lendo este texto, e isso o torna uma pessoa diferente, ainda que sutilmente.

Assim, talvez você fale sobre este texto com algum amigo que não conheça o DELFOS (aliás, por favor, faça isso), e desta forma, a minha escolha de escrever este texto afetou também a vida desse seu amigo que nunca tinha ouvido falar de mim. De repente, ele resolve entrar e também se torna um delfonauta. Na melhor das dimensões paralelas, ele compartilha no Facebook, o negócio viraliza e o DELFOS se torna um site maior. E assim o negócio vai se espalhando. As nossas escolhas vão modificando o mundo, pouco a pouco.

Talvez se eu não tivesse criado o DELFOS, teria aberto uma loja de gibis, ou feito filmes de alto teor nerd. Mas possivelmente, seja qual fosse a minha escolha, isso teria afetado a sua vida. Por quê? Porque é assim. Foi assim. Será assim.

Segundo o que mostra no final do jogo, cada pequena escolha que fazemos cria um novo mundo. Se você escolher tomar suco ao invés de leite ao acordar, possivelmente a diferença entre esses mundos não vai ser tão grande, mas mesmo assim gerará duas versões da sua pessoa. Uma que escolheu suco, e a outra leite. E cada pequena escolha dessas cria uma nova dimensão onde você escolheu a outra opção. E daí vem o nome do jogo.

A princípio, Bioshock Infinite parece apenas mais um título pegajoso, uma forma de evitar os números que desvalorizam uma franquia (pense num Call of Duty 74). Mas no final fica claro. É Infinite por causa dos infinitos mundos que são possíveis partindo da premissa um homem, uma cidade e um farol. Dependendo das escolhas dos personagens, esta premissa pode levar a Rapture, Andrew Ryan, little sisters e big daddies. Ou então Columbia, Comstock, Elizabeth e Songbird. É tudo a mesma coisa, mas é tudo diferente.

E com isso, assim como fez no primeiro Bioshock com a história do “would you kindly”, Infinite acaba até mesmo fazendo um comentário sobre o momento atual da indústria dos games, com seus reboots, FPSs militares e seus space marines bombados e carecas. É tudo a mesma coisa, mas de alguma forma diferente. Depende apenas das escolhas das pessoas. No caso, das desenvolvedoras de games.

Não é uma ideia nova, mas é fascinante. E assim, Bioshock mantém o seu lugar como a franquia de games mais inteligente da atualidade.

Agora eu quero saber de você. Que ideias o jogo te passou? Tem teorias milaborantes para dividir com a gente? Escolha afetar a minha vida e a dos milhares de delfonautas que lerão seu comentário e comente! Vai saber quão terrível será o mundo que a escolha de não comentar pode causar. ^^

LEIA TAMBÉM AS NOSSAS RESENHAS DA SÉRIE BIOSHOCK:

Bioshock: Andrew Ryan e sua Rapture.
Bioshock 2: o retorno a Rapture, agora dominada pela Sophia Lamb.
Bioshock Infinite: a cidade flutuante do profeta.