O livro A Coisa é um dos mais conhecidos de Stephen King. Certamente figura dentre seus melhores trabalhos. O próprio autor já demonstrou que possui um carinho especial por ele em declarações. Embora tenha ganhado uma adaptação para a TV em 1990, era de se surpreender que ele nunca tivesse ido parar no cinema até agora.

A demora valeu a pena. It: A Coisa figura facilmente entre as melhores adaptações cinematográficas de Stephen King e periga ser forte concorrente (se não for o campeão disparado) a melhor filme de terror do ano.

Para conseguir este feito ele nem precisou ser algo fora da caixinha ou reinventar a roda. Bastou fazer muito bem duas coisas. A primeira, resgatar aquele clima de aventura juvenil com muito sentimento, e sem ser esquemático, que reinava em anos mais antigos.

A segunda, criar personagens que tenham conteúdo, que criem empatia com o espectador e não cuja única função narrativa seja morrer daqui a cinco minutos. Um pecado que os filmes de terror modernos não se cansam de cometer.

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Temos aqui a história do clube dos perdedores, uma turma de amigos que são os zoados no colégio, os que sofrem bullying, os outsiders. Eles vivem na cidadezinha de Derry, que tem uma taxa de desaparecimento de crianças acima do normal. Quando o irmão caçula de Bill, um dos garotos do grupo, se torna uma das vítimas, ele e seus parças irão investigar o mistério.

E irão descobrir que uma força antiga e sobrenatural é a responsável. Assumindo a forma do palhaço Pennywise, ela irá explorar o mais profundo medo individual de cada uma das crianças para poder dominá-las e se alimentar delas.

Delfos, It: A Coisa
Bu!

O romance de Stephen King era um épico sobre medos infantis e o processo de crescimento, onde inevitavelmente esses terrores teriam de ser enfrentados. O filme consegue transpor isso muito bem para as telas.

Mudando a ambientação da história do final dos anos 1950 para fins dos 80, acaba criando algumas conexões curiosas. A mais aparente, e que não deixa de ser um grande paradoxo, é que o filme lembra muito Stranger Things. Tem até um dos moleques da série (o Mike) no elenco do filme, como Richie, o piadista do grupo!

A ambientação nos anos 80, um grupo de crianças combatendo um mal de ordem sobrenatural, as referências pop. O longa está diretamente relacionado com o sucesso do Netflix.

E o paradoxo se dá, obviamente, porque teria de ser o contrário: é a série que é altamente influenciada pela obra de Stephen King, chegando ao cume de ter a própria tipologia do logo idêntica à usada nas capas dos livros estadunidenses antigos do autor. Mas não consigo deixar de imaginar que foi justamente o sucesso do seriado que tenha permitido que It tenha sido filmado da forma como foi.

Não tem como negar, ambos os trabalhos caminham de mãos dadas, tematicamente são irmãos e possuem a mesma pegada. São praticamente complementares.

EU TE DOU UM BALÃO

O segundo elemento vem diretamente daquilo que eu sempre gostei na prosa de King, mais até do que sua habilidade de criar cenas assustadoras: sua incrível capacidade de criar personagens tridimensionais e desenvolvê-los até que você sinta que os conhece como se fosse um amigo ou parente.

Delfos, It: A Coisa, Cartaz

Você se importa com eles há muito tempo e já está totalmente apegado a eles até que eles tenham de passar por algo horrível e aí sim você sente o terror junto com eles. Aí sim o medo é totalmente eficiente.

O filme consegue passar esse elemento de identificação com maestria. O longa é inteiro das crianças e cada uma delas foi escolhida a dedo. Os moleques são incríveis e cada um tem o seu momento de brilhar. A interação do grupo é a grande força da narrativa.

A forma como eles brincam entre si, como se provocam bem naquele estilo de moleque, com respostas sacanas ao estilo “é a sua mãe!”. O filme é tão engraçado pelo relacionamento entre eles quanto é assustador quando o palhaço está em cena. Voltarei a ele mais adiante. Ainda preciso encerrar este assunto.

Esta pegada nostálgica infantojuvenil de jornada dos amigos lembra outra obra do autor igualmente bem adaptada para a sétima arte na forma do clássico da Sessão da Tarde Conta Comigo. Eu achei It do mesmo nível do filme em questão, só para se ter uma ideia da qualidade da adaptação.

O diretor Andy Muschietti manda muito bem. Ele faz uns planos realmente bonitos, outros mais criativos e de quebra ainda tem alguns lances de montagem que ajudam a condução da história. Visualmente, o filme é bastante caprichado.

Ainda por cima consegue um feito: mesmo quando usa efeitos especiais mais exagerados, com mais intervenções digitais in your face, que é algo que eu pessoalmente abomino, consegue fazer isso funcionar e ficar de fato sinistro. Ele mistura bem diversas técnicas, e no geral foi bem sucedido em todos os momentos assustadores criados.

O PALHAÇO DANÇARINO

Delfos, It: A Coisa
Alguém mais está ouvindo a música do Tubarão?

Por fim, falemos da grande figura-símbolo da película: Pennywise, o palhaço dos infernos. Ele é sinistro, e se você não tremer nas bases só de olhar para ele ou você tem bolas de aço inoxidável, ou você provavelmente já está morto e não se deu conta. Bill Skarsgard entrega uma performance horripilante como o monstro. Acho que hoje vou dormir de luz acesa…

Ele já entrega desde sua primeira aparição, a clássica cena do bueiro. E talvez este seja o único porém que eu tenha com o filme. A performance de Pennywise é tão forte, causa uma impressão inicial tão impactante, que todas as outras cenas onde ele aparece são mais orientadas para os sustos, sem tanto espaço para a atuação.

Fiquei com essa vontade de ver mais da atuação sinistra de Skarsgard como o icônico personagem, só que na maioria das vezes em que ele aparece são em momentos “bu”, com efeitos especiais como os privilegiados, ao invés da atuação do cara. Não chega a ser grave, mas foi algo que incomodou. Mas tirando isso, o resto é uma beleza.

E o melhor de tudo é que falta toda uma segunda parte da história para ser adaptada. Se essa outra metade for tão boa quanto esta, já está ótimo. It: A Coisa figura entre as melhores adaptações para a telona do trabalho de Stephen King, uma transposição para lá de bem sucedida de um de seus livros mais lembrados e queridos. Um senhor filme de terror.