Interpretações Delfianas – Matrix

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Aviso: Este texto contém partes da história do filme. Se você não assistiu a algum dos filmes e não quer ter nenhuma surpresa arruinada, pare de ler agora. Se você tiver algo a acrescentar ou a comentar, escreva um e-mail para nós ou deixe um comentário.

Este especial não tem como objetivo responder às várias perguntas lançadas pelos filmes, mas gerar discussões através de algumas interpretações pessoais, além de apresentar algumas relações com mitologia e filosofia, entre outras coisas. Este foi um dos primeiros textos que escrevemos para o DELFOS, mas fomos deixando, deixando e só está sendo publicado agora, aproveitando o lançamento do jogo Path of Neo. Sim, sabemos que está um pouco atrasado, mas esperamos que você se divirta bastante lendo. 🙂

Uma das coisas mais evidentes no filme é que os nomes são metáforas para a função dos personagens na história. Vamos esclarecer alguns deles além de falar um pouco sobre cada um dos personagens.

Neo – Keanu Reeves: Anagrama para one. Neo is the one (Neo é o escolhido/predestinado) é algo repetido à exaustão por vários personagens do filme em diversos momentos e formas diferentes. Além disso, Neo significa novo em latim, podendo representar a Nova Era que se iniciaria quando a profecia de que ele salvaria os humanos se tornasse realidade. A pronúncia correta para a palavra latina Neo seria Néo, e não Níu como todos os personagens o chamam no filme, com exceção da menina Sati. O porque de ela ser a única a chamá-lo desta forma permanece um mistério, ao menos para nós.

Neo também representa Jesus, o Messias, a redenção das pessoas que vivem em Zion (Sião é a terra prometida no Judaísmo e lembremos que os judeus ainda aguardam o Messias, como o povo de Zion aguarda o escolhido), no qual eles depositam todas suas esperanças e que morre para salvá-los. Em relação a isso, existe outro mistério: ao cegar Neo, o agente Smith o chama de Blind Messiah (Messias cego). Essa expressão me soa familiar e sem dúvida tem algum significado que, infelizmente, vai permanecer em mistério, ao menos neste texto. Também devemos lembrar que, no primeiro filme, Neo chega a morrer, e ressuscita logo em seguida. A última cena de Neo, inclusive, lembra muito o fim de outro personagem ao qual muitas vezes vemos atribuídas características messiânicas: o Rei Arthur e sua viagem a Avalon (não deixe de ler outro especial delfiano – a Semana Excalibur).

Outra analogia que podemos fazer deriva do fato de que, ao longo dos três filmes, diversos personagens se referem a Neo como “apenas humano” (still human ou only human). Talvez com isso, os Wachowski queiram dizer que Jesus, apesar de seus milagres, ainda era apenas humano. Ou talvez queiram dizer que a própria raça humana é divina e que todos temos o poder de fazer milagres.

Morpheus (Morfeu) – Laurence Fishburne: Morfeu é o deus grego do sono. No primeiro filme, ele era um terrorista procurado pelos agentes devido à grande quantidade de pessoas que, com a sua ajuda, despertaram da Matrix.

No mundo real, seu papel é semelhante ao de um apóstolo, que propaga entre os humanos a crença no messias. Dentro da Matrix, Morpheus pode simbolizar um filósofo. Ao despertar as pessoas para a realidade fora da Matrix, Morpheus, assim como Sócrates antes dele, tira os indivíduos de suas zonas de conforto, levando-os a pensar e questionar a razão de sua existência.

Ao levar as pessoas ao mundo real, Morpheus mostra a elas um caminho para a compreensão das questões fundamentais da existência humana. Com isso, os despertos descobrem a possibilidade de questionar o mundo e suas regras, externamente impostas, tornando-se marginais aos olhos do sistema.

Algumas pessoas podem se arrepender ao se aproximarem da verdade, porém a voltar não é uma opção. Exceto no caso de Cypher (Joe Pantoliano) no primeiro filme, que trai seus camaradas em troca da possibilidade de retornar à Matrix. E ele ainda acrescenta “Não quero me lembrar de nada e quero ser alguém poderoso”. Podia ser fácil assim na vida real, né? 🙂 A propósito, a traição de Cypher pode representar a traição de Judas.

Trinity (Trindade) – Carrie-Anne Moss: A Santíssima Trindade do cristianismo, representada por três entidades “pai, filho e espírito santo”. A trindade é o mistério fundamental do cristianismo. São três pessoas diferentes, nas quais está presente a essência divina, ou seja, Deus apesar de ser um, é três. Isso pode representar que toda a raça humana faz parte de um único todo, ou seja, embora sejamos trilhões, somos um.

Segundo a Bíblia, o Pai tem o poder de gerar eternamente o filho. Morpheus tem o poder de despertar as pessoas para o mundo real, assim como fez com Neo e com toda a tripulação do Nabucodonossor. Será que ele não poderia acordar outra pessoa que viria a desenvolver os mesmo poderes de Neo? Podemos concluir então, que Morpheus seria o Pai da trindade. Já concluímos que Neo é Jesus, ou seja, o Filho da trindade, pois morreu para a redenção dos humanos. Novamente segundo a Bíblia, o Espírito Santo procede das outras duas entidades. Trinity tem uma relação muito forte tanto com Morpheus (de obediência e amizade) quanto com Neo (de amor). Poderia, então, ela ser o Espírito Santo da trindade? No primeiro filme, há um diálogo onde Neo admite pensar que Trinity fosse um homem. Ela retruca: “A maioria dos homens pensa assim”. Bom, eu, pelo menos, sempre pensei no Espírito Santo como um homem. Você não?

E mais, se ela tem uma relação de amor com o Messias, poderia simbolizar também Maria Madalena. Com isso em mente, seria Maria Madalena o Espírito Santo da Santíssima Trindade no cristianismo? Creio que estamos indo longe demais, então vou parar por aqui. 🙂

Persephone (Perséfone) – Monica Belucci: Perséfone é filha de Deméter, deusa grega da agricultura, comumente ligada também à fertilidade. Para compreendermos a personagem de Monica Belucci, é necessário falarmos primeiro sobre a deusa. Hades – deus do mundo subterrâneo, o destino final dos mortos, sempre associado ao Inferno – apaixona-se por Perséfone e então rapta a deusa para tê-la ao seu lado. Deméter, fortemente unida à filha, ficou extremamente abalada por este acontecimento, se recusando a voltar ao Olimpo sem Perséfone. Na sua ausência, a terra cultivada não prosperava e foi necessária e intervenção de outros deuses para que Deméter voltasse às suas funções, através de negociação com Hades. Fica então acertado que Perséfone ficará metade do ano com a mãe (primavera/verão) e a outra metade com seu marido, Hades (outono/inverno). Neste período do ano as folhas das plantas caem e o cultivo é praticamente impossibilitado.

Voltando ao filme, privada de sentir o amor, Persephone sente-se prisioneira de Merovingian (este, no caso, representaria Hades). Desta forma, o mundo real enfrenta uma triste realidade, onde a vida resiste muito para sobreviver. Zion não conhece abundância de cultivo, o Sol em suas peles ou o cheiro das flores da primavera. Persephone anseia pela liberdade e encontra esperança nas mãos de Neo, a quem entrega o Chaveiro. Os deuses gregos, entretanto, possuíam tantos defeitos quanto os seres humanos, entre eles, a ambição. Persephone exige, então, uma recompensa para entregar o Chaveiro aos heróis: sentir o amor do qual é privada através de um beijo de Neo (e de Niobe e Ghost se você jogou o Enter The Matrix).

Merovingian (Merovíngio): existe uma teoria que diz que Jesus Cristo não morreu na cruz. Ele teria fugido para o sul da França, onde se casou com Maria Madalena e deixou filhos. Uma linhagem de nobres franceses se denominavam merovíngios e acreditavam ser estes descendentes. Merovingian seria, portanto, um descendente direto de Jesus, ou quem sabe, o próprio. Não é de se estranhar que Merovingian fale com sotaque francês. Isso fica ainda mais claro quando a Oráculo diz que Merovingian é um dos programas mais antigos. Possivelmente ela estava se referindo à linhagem Merovíngia, que já duraria mais de 2 mil anos. Outro momento interessante é quando Morpheus pergunta se Merovingian sabe por que eles estão lá e o segundo rebate: “Claro que sei. A pergunta é vocês sabem?”. Essa cena é como se Merovingian estivesse se dirigindo ao público em relação ao sentido da vida, como se dissesse: “Claro que eu sei, mas vocês sabem por que vocês estão aqui (na Terra?)”

Quanto à sua relação com Persephone, vejamos: se é comum as pessoas se referirem a Hades como o deus do Inferno (em outras palavras, o diabo), e se merovíngios são os descendentes de Jesus, mas ao mesmo tempo, o Merovingian do filme representa Hades, poderia então os irmãos Wachowski estarem querendo dizer que o diabo (ou Lúcifer) e Jesus são a mesma entidade? Até porque Lúcifer já esteve bem próximo de Deus. Talvez fosse até tratado como… um filho? Não podemos deixar de citar também o momento em que Seraph, Trinity e Morpheus estão descendo no elevador para encontrar o francês. No botão vermelho que eles apertam, podemos ver a palavra “Hel” escrita, o nome do clube de Merovingian. Hell (com dois “L”), em português, significa inferno.

Seraph (Serafim): Serafim é a classe mais alta de anjos. São os anjos que protegem Deus diretamente. Seraph protege a Oráculo. Portanto, a Oráculo é Deus? Isso pode ser sustentado ao lembrarmos do momento em que um dos guardas de Merovingian avista Seraph e exclama: “Nossa, ele está sem asas”.

Por outro lado, em Revolutions, quando Seraph invade o clube de Merovingian, este exclama: “O filho pródigo retorna”. Isto pode nos levar a pensar que Seraph já protegeu Merovingian. Se este é descendente de Jesus, não seria de se estranhar que Deus incumbiu um de seus Serafins para proteger seu netinho.

Mas se Merovingian foi traído por Seraph, este não poderia ser Judas (inclusive, é chamado assim pelo francês), que traiu Jesus? E se Seraph traiu um descendente de Deus, podemos dizer que ele traiu o próprio Deus. Neste caso, ele poderia ser Lúcifer, o anjo caído (e, justamente por isso, sem asas)? E a oráculo, que levou à traição de Deus? Talvez a serpente, ou mesmo o senhor do Inferno em pessoa?

Arquiteto – A primeira versão da Matrix era um mundo perfeito e foi vítima do mesmo destino do paraíso inicialmente criado pelo Deus judaico-cristão. Diante da frustração de seus criadores gerada por aqueles que lá viviam, a reconstrução de ambos foi necessária. Surgia então, a Matrix imperfeita e o mundo onde vivemos hoje que, aliás, é o representado na Matrix. Ou seja, o paraíso bíblico foi a primeira Matrix, rejeitado pelos seus habitantes. O mundo onde vivemos hoje é a nova versão, aquela pós-paraíso. Arquiteto, portanto, é o Deus bíblico. Lembremos também que é comum vermos Deus sendo chamado de “O Grande Arquiteto do Universo”.

Arquiteto & Oráculo – A mais explícita característica não-humana da primeira versão da Matrix é a sua perfeição. Esta natureza provém das divinas mãos do Arquiteto, que utiliza as características das máquinas para determinar o tempo e o espaço em que vivem os humanos. Com o corpo eternamente (ou não) adormecido, os homens nesta história perdem suas características humanas: a forma como aprendem e vivenciam o mundo ao seu redor não necessita mais passar pela vivência física para que uma experiência seja marcada como lembrança para o indivíduo. A experiência vivida na Matrix é como um sonho. Uma referência muito clara aparece logo no início da trilogia: o processo do despertar de Neo, “Wake up”. Entretanto, o fator humano parece emergir naqueles que desconfiam e questionam o que é “real” (e posteriormente são acordados para a realidade), como é o caso do escolhido. É como se ele precisasse viver na pele as sensações dos acontecimentos e sentir-se, com o corpo, parte da realidade. Precisam, como diz Gilberto Safra, vivenciar o tempo e o espaço num ritmo orgânico, de maneira que os acontecimentos sejam marcados pela temporalidade cíclica, e não ditados pelas máquinas. Como aponta Hanna Arendt: somente desta forma, existindo e acontecendo no mundo o ser humano, de fato, vive.

Oráculo: Como a serpente do Antigo Testamento, o Oráculo possibilitou a constituição de um mundo imperfeito. A primeira, ao oferecer a maçã para Adão e Eva, foi responsável pelo pecado original que expulsa os humanos do paraíso. O segundo, um programa intuitivo criado para investigar a psique humana, encontrou a solução para que as cobaias, ou seja, os humanos, aceitassem a Matrix.

Assim como em DELFOS, na Grécia Antiga (eu não ia perder a chance de fazer propaganda do site aqui) o Oráculo é a fonte de sabedoria, onde os homens buscam conselhos e orientações. Como uma mãe, o Oráculo acolhe aqueles que chegam até ela e está presente sempre que o procuram.

Outra semelhança entre o oráculo de Matrix e o de DELFOS é que o segundo diz ao filósofo Sócrates que ele é o homem mais sábio de todos. Ele, porém, não acredita. Alguém lembrou da primeira visita de Neo ao oráculo ou fui só eu?

Para facilitar a interpretação, a equipe do filme deixou uma dica: o oráculo do filme mostra para Neo a frase “Conhece-te a ti mesmo”, que está pendurada na parede. Esta frase também está inscrita no oráculo de DELFOS.

Trainman – Simboliza Caronte, aquele que, segundo a mitologia grega, leva os mortos para o mundo inferior através do rio Styx. No filme, Trainman é o responsável por transportar as pessoas do mundo real para a Matrix e vice-versa. Essa idéia pode ser embasada no fato de que Trainman serve Merovingian, que, conforme explicado anteriormente, pode simbolizar Hades, o deus do mundo inferior. E será que a Matrix, ou seja, o mundo em que vivemos, simboliza o inferno?

Nabucodonossor – A nave da equipe de Morpheus tem o nome de um rei da Babilônia que destruiu o templo de Jerusalém com o objetivo de recolocar o povo no caminho de Deus.

Zion (Sião) – Terra prometida no judaísmo.

01 – O nome da cidade das máquinas é uma referência ao código binário através do qual as máquinas operam.

Agente Smith – Hugo Weaving – O oposto de Neo. Se Neo é o filho de Deus, Smith é o filho do diabo. Além do já explicado nos outros personagens, para suportar este argumento, podemos lembrar da forma como Neo enxerga Smith ao ficar cego: em chamas. A batalha final, com Neo, tem todo aquele clima apocalíptico, é um verdadeiro armagedom, a batalha entre o céu e o inferno. Quando Smith exclama: “Este é meu mundo!” é, possivelmente, uma referência ao fato de a própria Matrix ser o inferno. Algumas tradições dizem que o mundo físico é o inferno, pois é aqui que sofremos para evoluir. Se a Matrix é o inferno e o inferno é o mundo em que vivemos, a Matrix é o mundo em que vivemos, o que está de acordo com o início do primeiro filme. Voltando ao agente Smith em seu encontro com a Oráculo, ele a chama de mãe, o que solidifica nosso argumento anterior de que a Oráculo é o Diabo, Seraph é Lúcifer e Smith seria Damien (pensando no nome do filho do diabo no filme A Profecia). Esses três formam, então, a trindade do mal.

Chega, né? Claro que esse texto não deve ser considerado como um tratado definitivo sobre o filme, apenas uma conversa entre amigos sobre um dos filmes mais marcantes dos últimos anos. Então agora é sua vez de falar. Se tiver algo a acrescentar ou a discordar, o espaço para comentários é todo seu.

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