David Bowie – O camaleão da música – Parte 2

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Olá e bem-vindo novamente ao Tremendões delfiano dedicado ao grande David Bowie. Nesta segunda e última parte da matéria, falarei sobre o resto de sua carreira musical, que passou por períodos bastante irregulares até chegar ao final com um último disco glorioso, o encerramento perfeito para uma carreira inigualável.

Antes, contudo, façamos um interlúdio para relembrar a carreira de Bowie como ator, faceta pela qual ele também ficou bastante famoso. Como muitos músicos que se aventuram no campo da atuação, David também ficou muito conhecido por seus filmes e vale a pena relembrar alguns dos principais.

BOWIE VAI AO CINEMA

Vale dizer que, antes da fama, o músico já tinha experiência com interpretação, tendo participado de espetáculos teatrais, de mímica e de curtas-metragens. Por isso, atuar não era exatamente uma novidade para ele. Após virar uma celebridade musical, os convites aumentaram e ele participou tanto de projetos mais independentes quanto de trabalhos mais mainstream.

Seu primeiro papel de destaque foi no longa O Homem Que Caiu na Terra, de 1976, dirigido pelo cineasta inglês Nicolas Roeg. Ao interpretar Thomas Jerome Newton, um alienígena que vem à Terra buscar água para seu planeta e acaba corrompido pela humanidade, parecia um papel perfeito para quem já havia sido Ziggy Stardust e sempre usou do imaginário espacial e cósmico em suas letras, um de seus interesses genuínos. As capas dos discos Station to Station e Low são fotografias still tiradas deste filme.

Além disso, ele fez um vampiro sexy no cult Fome de Viver (1983) , de Tony Scott. Foi Jareth, o Rei dos Duendes no longa Labirinto – A Magia do Tempo (1986), que marcou a infância de muita gente e onde ele também assinou a trilha sonora. Bem como compôs uma de suas canções mais famosas, Absolute Beginners, para o filme de mesmo nome de 1986, onde também atua.

Teve uma performance bastante elogiada em Furyo, Em Nome da Honra (1983). Lavou as mãos como Pôncio Pilatos no polêmico A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese em 1988. Trabalhou com David Lynch em Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992).

Encarnou seu ídolo Andy Warhol em Basquiat – Traços de uma Vida (1996), interpretou a si mesmo na comédia de Ben Stiller Zoolander (2001) e foi o inventor Nikola Tesla em O Grande Truque, de Christopher Nolan, um de seus últimos papéis, feito quando já fazia aparições públicas apenas esporádicas devido a problemas de saúde. Há muitos outros papéis em sua filmografia, porém estes são os principais e vale a pena dar uma olhada nestes longas.

ACREDITANDO NAS COISAS MAIS ESTRANHAS, AMANDO O ALIENÍGENA

Voltando à carreira musical, após seu período áureo e o sucesso de Let’s Dance, o artista se acomodou, passando apenas a tentar reeditar o mesmo sucesso do disco em questão em trabalhos sem o mesmo brilho, como Tonight (1984) e Never Let Me Down (1987).

O público passou a vê-lo como um dinossauro ultrapassado, longe do performer que apontava caminhos de outrora. Perdido e sem direcionamento, tentou tirar um pouco da responsabilidade de seus ombros ao virar integrante de uma banda pela primeira vez desde os anos 1960. O Tin Machine era um grupo de Rock com guitarras distorcidas, mas que não agradou. Lançou dois discos em 1989 e 1991 e acabou sem deixar saudades, sendo considerado um dos grandes fiascos de sua carreira.

Continuou a entrada nos anos 90 sem saber bem para qual lado atirar. Investiu num Rock mais elegante, porém sem grandes novidades, nos discos Black Tie White Noise e The Buddha of Suburbia, ambos de 1993. Os dois têm sua parcela de fãs, mas eu não me encontro entre eles. The Buddha of Suburbia, embora seja na verdade a trilha sonora para uma série de TV inglesa, é considerado um álbum oficial de estúdio de Bowie e consta de sua discografia em seu site oficial.

Na segunda metade da década de 90, embora não tenha alcançado o mesmo sucesso comercial de outros tempos, ao menos voltou a lançar trabalhos mais ousados e que novamente o colocaram sob os holofotes. O primeiro foi 1. Outside, de 1995, o qual considero um dos discos mais experimentais de sua carreira. Utilizando-se do emergente Rock Industrial, é cheio de vinhetas, estruturas quebradas e possui uma história confusa que dá liga às faixas. Gerou o sucesso Hallo Spaceboy.

O outro foi Earthling, de 1997, onde Bowie mergulhava na nova cena da música eletrônica da época que estava se popularizando no mainstream, de Drum n’ Bass, Jungle e congêneres. Os clipes de Little Wonder e I’m Afraid of Americans passaram bastante na MTV na época e ele até ressuscitou o alter-ego do Thin White Duke nesse período.

Em 1999, deu uma nova mudança de direcionamento com o lançamento de ‘hours…’, um disco essencialmente de baladas, mas que mais uma vez não agradou muito a público e crítica, encerrando sua passagem pela década de 90 novamente em baixa.

EU DESCOBRI UMA ESTRELA

Em baixa e sem novos caminhos para apontar, David resolveu apostar no feijão com arroz para entrar no século 21, o que resultou em dois trabalhos interessantes, que, se não são um primor de criatividade, renderam dois ótimos discos de Rock com uma pegada mais alternativa, os quais considero bastante subestimados.

Heathen, de 2002, é mais climático, apostando em texturas diferentes. Destaco a cover de Cactus, dos Pixies, banda da qual Bowie sempre foi fãzaço. No ano seguinte lançou Reality, um trabalho mais direto e seco, com excelentes canções, como a faixa-título, Pablo Picasso e o single New Killer Star.

Este álbum também marcou a última turnê do músico. Em 2004, após um show na mesma Alemanha que o acolheu em um de seus períodos mais criativos, ele sofreu um problema cardíaco e precisou passar por uma cirurgia de emergência. As datas restantes da turnê foram canceladas, suas aparições públicas foram diminuindo até tornarem-se raridades, e assim, discretamente, Bowie se retirou da vida pública.

OLHE AQUI PARA CIMA, ESTOU NO CÉU

Para um artista que sempre soube se vender e manipular a mídia com maestria, quando saiu de cena, levando uma vida reservada, com poucas aparições e nenhuma notícia divulgada à imprensa, seu longo silêncio causou estranhamento a todos. No período de quase dez anos em que passou recluso, começaram a pipocar rumores de que estaria mal de saúde e até mesmo de que já teria morrido.

Para acabar com os boatos e novamente chacoalhar o mundo, em 2013, no dia de seu aniversário, soltou o novo single Where Are We Now? e anunciou para março do mesmo ano o lançamento de seu primeiro disco de inéditas em dez anos, pegando todos de surpresa.

Em tempos de redes sociais e notícias em tempo real, ele havia conseguido produzir um álbum e manter sua existência em segredo até que ele próprio decidisse divulgá-lo. Não só foi uma excelente surpresa para todos, como The Next Day, o disco, era excelente, angariando elogios da imprensa, inclusive do DELFOS, ao fazer uma revisão musical dos principais momentos da carreira do cantor.

Daí, no final de 2015 começaram a pipocar novas canções suas, que fariam parte de um novo álbum. Blackstar teve seu lançamento programado para o dia do aniversário de 69 anos do cantor. Para o novo trabalho, Bowie contou com a ajuda de um grupo de Jazz nas gravações, pois novamente queria atingir um som diferente.

E conseguiu. O álbum é um dos mais distintos, experimentais e estranhamente belos de sua carreira, com uma canção de abertura, Blackstar, de dez minutos, mudanças de andamento desconexas, mas que de alguma forma se encaixam, letras enigmáticas, videoclipes de atmosfera sinistra e a sensação geral de que David Bowie havia reencontrado o caminho e lançado uma nova obra-prima.

E então ele morreu dois dias depois. Ficamos sabendo de sua longa batalha contra o câncer e o álbum ganhou toda uma nova gama de significados. Aquela era sua despedida, era Bowie dando adeus à música e a seus fãs. Era sua última tacada de gênio e o encerramento perfeito e belíssimo para uma carreira irretocável, especial, inspiradora.

David partiu deixando mulher (a ex-modelo Iman) e dois filhos, Alexandria e o cineasta Duncan Jones, fruto de seu primeiro casamento com Angie Bowie, além de uma legião de fãs inconsoláveis, mas que sempre terão sua imensa e genial discografia para lhes dar consolo. Afinal, David Bowie partiu para as estrelas, lugar de onde sempre pareceu ter vindo, mas nos deixou um grande presente e legado, sua música. O Starman voltou para casa. Deixe as crianças dançarem.

Momento mais tremendão: A incrível sequência de onze álbuns indispensáveis lançados entre 1971 e 1983. Quantos artistas você conhece que conseguiram enfileirar tantos discos fantásticos um atrás do outro?

Momento menos tremendão: Por outro lado, seus trabalhos de 1984 até a primeira metade dos anos 90 formam o ponto mais baixo de sua carreira, com discos completamente esquecíveis.

CURIOSIDADE:

– Para quem quiser ler e saber mais sobre o Camaleão, há dois livros disponíveis no Brasil altamente recomendáveis. O primeiro é Bowie – A Biografia, de Marc Spitz, que conta toda a vida do músico até seu período recluso, incluindo, além de detalhes profissionais, passagens pessoais. O segundo é O Homem Que Vendeu o Mundo, de Peter Doggett, o qual analisa absolutamente todas as letras do cantor escritas na década de 1970, fazendo uma intensa análise sócio-cultural sobre o período e como ele afetou as composições de Bowie.