Bioshock

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Se Halo 3 é economicamente o grande jogo do Xbox 3RL, este Bioshock sem dúvida ocupa outro posto de destaque. Não, não é o mais vendido, nem o mais popular, mas é provavelmente o mais cult de 2007 e acabou se tornando um grande queridinho dos gamers do mundo inteiro.

Analisado friamente, Bioshock é um FPS bem tradicional e muitas de suas “inovações” na verdade não têm nada de novo. Pelo menos não se você for um jogador escolado. Contudo, esse jogo realmente me conquistou por seu lado cabeça, por suas referências filosóficas, em especial pela corrente do Objetivismo e pelos escritos de Ayn Rand. Isso sim, torna Bioshock único, elevando os games ao status de um meio de comunicação em massa e a uma atividade, antes de qualquer outra coisa, intelectual. Tão intelectual quanto ler um livro. Aliás, dependendo do livro, até mais. E tudo isso envolto em um jogo muito divertido e emocionante. Pô, alguém discorda que essa é a melhor forma de popularizar conteúdo intelectual? Para variar um pouco, vamos mudar a ordem dos intertítulos deste texto.

A HISTÓRIA

Estamos em 1960. Você é um fulano que está num avião que cai em pleno oceano. Por sorte, tem um farol bem próximo. Você nada até lá e dentro encontra umas faixas e esculturas semelhantes a propagandas políticas. Curioso que só você mesmo, encontra uma espécie de mini-submarino, entra lá e puxa uma alavanca. O submarino (chamado no jogo de bathysphere) começa a se mexer e a tocar um discurso de alguém que se identifica como Andrew Ryan, dizendo que negou o capitalismo, o comunismo e o cristianismo, e escolheu Rapture. Nesse momento, você consegue ver através da janela uma lindíssima cidade subterrânea, um verdadeiro paraíso escondido da humanidade. Assim que sua bathysphere aporta na cidade, antes mesmo de sair dela, você presencia um assassinato. É fácil deduzir que alguma coisa deu errado nesse paraíso e ele se tornou um inferno. E muito provavelmente vai se tornar a sua tumba.

Basicamente, Rapture é uma cidade utópica criada pelo bilionário Andrew Ryan. Descontente com os princípios do comunismo ou da igreja, e desiludido com o capitalismo muito longe do ideal que foi aplicado na superfície, Andrew sonhou em construir um novo mundo. Um mundo secreto, no fundo do oceano e que viveria eternamente em segredo e isolado da sociedade. Apenas as mentes mais brilhantes da Terra seriam convidadas a viver em Rapture. Lá, começariam juntos uma nova vida, uma nova sociedade capitalista criada do zero, evitando os erros da superfície, mantendo-se fiel à teoria deste sistema econômico, valorizando o livre-arbítrio e a livre iniciativa, onde o homem seria livre para criar e investir no que quisesse, sem intervenções de governos ou da religião. “Qual é a diferença entre um homem e um parasita?”, diz Andrew Ryan, para em seguida responder: “Um homem cria, um parasita pergunta ‘onde está a minha parte?’. Um homem inventa, um parasita avisa que ele está brincando de Deus”.

Só que Ryan, do alto de sua inteligência, não percebeu que, mesmo em uma sociedade composta apenas pela elite mundial, ainda seria necessário alguém para limpar o chão. O capitalismo, por mais avançado que seja, sempre vai criar as diferenças de classe e as classes inferiores nunca estarão satisfeitas com sua posição, especialmente se esse povo era, poucos meses atrás, a elite do mundo da superfície. Essa falta de visão vai lhe custar muito caro, sobretudo quando um de seus convidados perceber o surgimento desses problemas em Rapture.

O delfonauta mais chegado em filosofia sem dúvida sacou aí as referências a Ayn Rand – a semelhança de seu nome com Andrew Ryan NÃO é mera coincidência – e até mesmo com o satanismo moderno de Anton LaVey. Um tanto reacionário, sem dúvida, mas eu não posso negar a atração que uma tentativa de criar uma sociedade ideal, isolada dos podres do mundo, exerce em mim. E é justamente por isso que esse game me tocou tanto. E verdade seja dita, eu me tornei um verdadeiro fã e seguidor da filosofia de Andrew Ryan. E muito provavelmente, você também se tornará, ao jogar Bioshock dando a devida atenção a seus pensamentos.

Voltando à história, o jogador logo é contatado por um tal de Atlas (mais uma referência à obra de Rand) que parece não gostar muito de Andrew e, sem tardar muito, lhe incumbe a tarefa de matar o rei de Rapture. Por quê? Ora, quem se importa? Se é isso que você precisa fazer para progredir na história, é isso que você fará, certo? Não é assim que os videogames funcionam? Pois Bioshock tem as manhas até de questionar esse tipo de atitude dos jogadores, nos levando a pensar porque sempre seguimos as ordens que o videogame nos passa. E, quando você terminar o jogo, acredite, nunca mais vai jogar outro do mesmo jeito.

Como já era de se esperar, em um mundo habitado pelas mentes mais brilhantes da Terra, e sem perder tempo em discussões éticas, morais e religiosas, os cientistas fizeram uma série de descobertas, entre elas, como acelerar a evolução humana através de injeções de Plasmids. O problema é que essas injeções tinham efeitos colaterais, deixavam as pessoas dependentes e as tornavam loucas e agressivas. E isso é o que torna a cidade tão perigosa para você.

Aos poucos, a história vai se revelando e você vai entendendo exatamente o que aconteceu em Rapture para ferrar tudo. Infelizmente, quando as coisas se aproximam do fim, e a desnecessária “revelação tenebrosa tan-tan-tan” acontece, é difícil conter o gosto amargo de decepção. Esse é o tipo de história que não depende de um final para ser boa. É o meio que a torna tão especial. Por causa disso, ela definitivamente não precisaria de uma viradinha surpresa, mas essa característica está lá – e, para piorar, tudo que vem depois dessa viradinha (que acontece no momento em que você se encontra com Andrew Ryan), é pior do que o que veio antes. Uma pena. Pelo menos o encontro com Ryan está entre os melhores momentos recentes dos games. Se Bioshock terminasse ali seria quase perfeito.

Outra decepção, sobretudo quando pensamos em quão legal é a história, é a total ausência de cutscenes, tudo é contado através de diários de voz que você encontra pelo caminho, mas que são completamente opcionais e você dificilmente vai achar todos logo de cara, deixando a história não-linear e incompleta. Ok, o jogo é assim para ser mais realista e nunca quebrar o clima de imersão, mas, já pensou que legal seria ver flashbacks de Rapture sendo construída e de tudo mais que aconteceu por ali? Talvez Bioshock pudesse seguir a escola de God of War no quesito storytelling, contando tudo através de flashbacks conforme o jogador avança.

O JOGO

Indiscutivelmente, a primeira fase de Bioshock, sintomaticamente intitulada Welcome to Rapture é uma das mais medonhas, emocionantes e imersivas que eu já tive o prazer de jogar. Além do medo natural do personagem na sua situação, você ainda vai ter que encarar túneis de vidro sendo destruídos por um pedaço de avião (lembre-se que você está no fundo do oceano) e outras coisas geniais. Infelizmente, daí em diante, essa “ação roteirizada”, dá uma diminuída e o jogo se torna mais “comum”.

Você começa completamente desarmado e logo pega uma chave de fenda que será sua arma principal nos primeiros minutos. Claro, não demora muito para você achar seu primeiro Plasmid e injetá-lo em si mesmo, ganhando o poder de eletrocutar os inimigos.

Todo esse clima de terror do início, combinado ao fato de você ter apenas uma arma “de porrada” e um choquinho que paralisa os inimigos, faz com que o começo de Bioshock seja deveras parecido com o maravilhoso Condemned. Depois, conforme ele abre mão do terror, se torna mais ação e você começa a pegar armas de fogo e outras magias, começa a lembrar outro jogo tremendão (na verdade, o meu FPS preferido), o Clive Barker’s Undying.

O problema é que em nenhum momento a jogabilidade é tão boa quanto a do seu semelhante mais antigo. Em Undying, por exemplo, você aciona as magias com um botão do mouse, e as armas tradicionais com o outro. Além de prático, você podia usar as duas ao mesmo tempo. Aqui você só pode usar uma de cada vez e isso prejudica nos combates mais acirrados.

Outra falha grave é que poucas são as magias de ataque eficientes. A melhor é a Incinerate, que queima seus desafetos, mas mesmo essa não é muito boa, pois simplesmente vai tirando a energia do cara aos poucos, sendo que você pode tirar toda ela de uma vez estourando os miolos do sujeito com um tiro bem dado de escopeta. Outras magias são ainda mais inúteis, como a telecinese, que permite jogar entulho nos inimigos (e eventualmente pegar coisas que estão fora de alcance, o que é legal) ou a projeção de um holograma que confunde seus inimigos. A idéia de combinar magias e armas é ótima e o Undying prova que, se for bem feita, pode dar numa jogabilidade bem interessante, mas o gameplay de Bioshock só pode ser considerado inovador por quem nunca jogou Condemned ou Undying, pois não apresenta absolutamente nenhuma novidade nesse aspecto.

Por fim, Bioshock tem dois aspectos que o diferenciam dos outros. O primeiro e principal é que você não morre. Ou melhor, morre, mas é simplesmente revivido com um pouco de saúde e de mana (chamado no jogo de Eve) em algum checkpoint (chamado pelo jogo de Vita-Chamber) próximo. Seus itens e munição estão exatamente iguais, assim como a energia dos seus inimigos. Ou seja, você só precisa andar novamente até lá e terminar o serviço. Desse jeito, mesmo que você escolha a maior dificuldade e jogue muito mal, vai conseguir chegar até o final com a devida insistência. Sim, Bioshock é bem fácil, mas não considero isso um problema. Se o caro delfonauta quer desafio, contudo, não é indicado para você.

O outro ponto interessante é que, além dos inimigos tradicionais, as fases são habitadas por uma dupla bem estranha. Uma fofa e assustadora menininha que usa uma enorme seringa para tirar sangue dos inúmeros presuntos espalhados por Rapture, chamada de Little Sister e um brutamontes que tem a missão de protegê-la chamado de Big Daddy. Você precisa do Adam das Little Sisters para poder “comprar” novas magias e, para chegar na pequerrucha, você precisa matar o grandalhão. Curiosamente, eles são ridiculamente difíceis no início do jogo (acho que na minha primeira luta com um deles, eu morri mais de cinco vezes) e estranhamente fáceis mais para a frente, meio que o caminho inverso do que vemos tradicionalmente em games.

Assim que você matar o Paizão, a Irmãzinha fica à sua disposição. Você pode matá-la e pegar 160 Adam ou então salvar a vida dela e pegar apenas 80. Só que, ao contrário do que parece, você ganha mais salvando a garota, pois isso faz com que as menininhas salvas fiquem constantemente deixando presentes para você, com novas magias e, não raro, com mais de 200 Adam. Salvar ou matar as moçoilas vai afetar o final do jogo e devo dizer que o final “feliz” é estranhamente fofo, considerando quão densa é a história inteira. O final deprê tem mais a ver com o restante da história, mas ele não é tão legal.

Aqui devo reclamar de uma coisa bem chata. Em uma das primeiras fases, o HUD mostrava que existiam três Little Sisters, mas eu encontrei quatro. Isso causou um “bug” no jogo que fez com que eu ficasse impossibilitado de pegar um dos plasmids que me seria dado de presente, e por causa disso não consegui o Achievement concedido a quem tiver todos os plasmids.

Uma coisa legal que vale ser dita é que o jogo pode ser salvo a qualquer momento. Mas prepare-se, isso vai lotar seu HD e recomendo salvar com alguma freqüência, já que não existem checkpoints de verdade e o sistema só auto-salva quando você muda de fase (e substitui o autosave anterior).

Ah, também não poderia deixar de reclamar da última fase, onde você tem que ficar protegendo umas meninas. Na boa, será que alguém realmente joga videogame para proteger criaturas indefesas? Eu sei que eu não!

GRÁFICOS E SONS

Deixei isso para o final pois, nesse caso, é o que menos importa. Os gráficos são ótimos, lindamente detalhados e com uma direção de arte absurda de boa. Os melhores momentos, contudo, são os lugares “abertos”. Está entre aspas, pois, já que é uma cidade subterrânea, não é realmente aberta, mas com paredes transparentes ou vidros. É uma pena que não existam mais lugares assim no jogo, pois é aí que você se lembra que está embaixo da água. São nesses momentos que a direção de arte brilha, pois você pode ver peixinhos nadando do lado de fora, e ainda é possível ver propagandas e logotipos das empresas da cidade subterrânea. Próximo ao final do jogo, você encontra o local onde as Little Sisters são condicionadas para temer os humanos e se apegar aos Big Daddies. Lá, você encontra uma gravação de um dos cientistas que diz que, apesar de todas as mudanças genéticas feitas nas Irmãzinhas, elas ainda são crianças. Elas ainda brincam, cantam e encaram, como qualquer infante. É impossível não ser conquistado por esse grau de detalhes.

A música é quase inexistente, tirando alguns momentos de tensão clichês e algumas ótimas faixas licenciadas. É uma pena que não tenham explorado mais este aspecto. Os efeitos sonoros, por outro lado, são maravilhosos e contribuem muito para o climão do jogo. Para começar, temos a água, simplesmente perfeita. As vozes também estão muito bem atuadas e, de vez em quando, você ouve anúncios de produtos ou mesmo de avisos de leis da cidade (tipo “é proibido se aproximar das Little Sisters”). Isso realmente faz Rapture parecer uma sociedade de verdade e fico apenas triste por não ter nenhum momento em todo o jogo que mostre a cidade como o que ela foi no seu apogeu. Todas as casas e lugares que você entra estão destruídos e abandonados, no melhor estilão Condemned, e isso acaba deixando os cenários até um pouco repetitivos.

Um problema gravíssimo e que prejudica muito o bom entendimento da história é que as legendas são completamente não sincronizadas. É difícil entender como um jogo feito visivelmente com tanto capricho deixou algo tão óbvio escapar. No geral, é mais fácil de entender o que acontece com as legendas desligadas – o problema é que normalmente as vozes são abafadas pelo volume dos efeitos sonoros. Ou seja, de qualquer jeito, isso atrapalha bastante. Depois que essa resenha foi escrita, um update apareceu na Xbox Live que resolve esse problema, mas se você não tem seu console conectado à internet, o problema continua.

CONCLUSÃO

Sério: jogue Bioshock! Não, não é o melhor jogo de Xbox 360. Não, sua jogabilidade não tem nada de inovadora, ao contrário do que os jornalistas menos informados dizem por aí. Mas a filosofia intrínseca à sua história é digna de fazer os videogames finalmente serem respeitados como as manifestações culturais que realmente são. E isso é independente de você concordar ou não com a política e as idéias do Andrew Ryan, provavelmente o primeiro personagem de videogames do qual eu realmente virei fã! 😉

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