Bioshock 2

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Se você é um delfonauta fiel, provavelmente você tem duas qualidades: é gente boa e é inteligente. Como indivíduo portado dessas duas características, provavelmente gosta de filosofia e, se está num site nerd, não é fora de contexto pensar que também gosta de games. E, se você tem tudo isso que foi falado até agora, com certeza jogou o primeiro Bioshock (aliás, só leia o texto abaixo após ler a resenha do primeiro supralinkada, ou as coisas podem ficar confusas), correto? Então falemos um pouco sobre ele. Já que se passaram mais de dois anos, dessa vez posso comentar sem medo de spoilerar. Portanto, se não jogou ainda e pretende jogar, pule o próximo tópico.

WOULD YOU KINDLY READ ABOUT THE FIRST BIOSHOCK AGAIN?

O primeiro Bioshock é um jogo que me marcou tanto que eu estranhei ao constatar que não o premiei com o Selo Delfiano Supremo. Para começar, ele tem vários pontos que o destacam do lamacento terreno dos FPSs.

A narrativa, por exemplo, é completamente diferente. A total ausência de cutscenes pode fazer o jogador mais casual pensar que não existe história, mas é completamente o contrário. Bioshock tem a melhor e mais profunda história que os games já foram capazes de fazer. E ela é toda contada através de gravações em áudio que você encontra ao longo do jogo, tornando ouvir cada uma delas um verdadeiro prazer.

Em meu vasto, quase infinito, e modesto conhecimento em games, não me lembro de algum outro título que tenha uma profundidade filosófica tão grande. Com sua ideologia objetivista claramente influenciada por Ayn Rand, acredito que todos os que o jogaram até o fim prestando atenção na história foram tocados pelos pensamentos de Andrew Ryan; ou concordando completamente com eles, ou ficando com tanta raiva que o momento do confronto foi a melhor sensação desde aquela orgia envolvendo anões besuntados em azeite de oliva.

E por falar nesse confronto, fala sério! Eu não tenho a menor dúvida de que esse é o melhor momento que já presenciei na minha vida gamer. Se você não tem a possibilidade de jogar, assista ao vídeo abaixo para não se privar dessa experiência. Claro que, sem ter jogado e sem conhecer toda a filosofia de Rapture e do Andrew Ryan, vai perder muito. Ainda assim, é uma cena muito forte. A man chooses, a slave obeys!

Com essa cena, Bioshock não só deu um fim a um dos melhores, mais inteligentes e mais bem desenvolvidos personagem da história dos games, mas deu um tapa na cara de todo mundo que já pegou algum controle. Ora, vai dizer que você nunca fez nos videogames coisas que nunca faria apenas para o jogo continuar. Pois é. Bioshock questiona esse comportamento simplesmente tirando todas as opções.

Você passa 80% do jogo seguindo os objetivos que o personagem Atlas passa via rádio, sem questionar nada. E você nem pensa nisso, pois sempre agiu assim. Quando você encontra com Ryan, no entanto, ele joga essa sua ausência de livre arbítrio na cara, dizendo que você estava fazendo isso porque estava sendo controlado pela frase “would you kindly”, que seu personagem foi condicionado a obedecer desde a infância. E Andrew sacrifica a própria vida tentando, inutilmente, restaurar o seu livre arbítrio. Was a man sent to kill? Or a slave? Cara, isso é simplesmente genial!

Se acabasse nesse ponto, Bioshock fecharia com chave de ouro, sendo um jogo que modificaria para sempre qualquer um que investiu seu tempo nele. Infelizmente, depois disso o jogo continua por mais algumas fases e a ausência de Andrew Ryan é sentida, pois o jogo perde não só sua face, como seu carisma e sua inteligência. E provavelmente foi por causa dessas últimas fases que ele não levou o Selo Delfiano Supremo.

A MAN CREATES, A PARASITE DOES SEQUELS

Parece que eu quase não falei nada do segundo jogo até agora, não é? Pois é, isso foi o que você foi condicionado a pensar pelo tópico acima. Na verdade, eu já comecei a resenha parágrafos atrás.

Várias das características supracitadas estão aqui. A ausência de cutscenes e a história profunda contada por gravações em áudio estão presentes, tais como a parte filosófica, dessa vez abordada por um ângulo mais espiritual. O problema é que da segunda vez o impacto é muito menor, tornando Bioshock 2, no máximo, um bom jogo, não a experiência inesquecível que foi o primeiro. E convenhamos, o primeiro não se destacou por absolutamente nada da sua jogabilidade, que era apenas uma versão piorada de Clive Barker’s Undying. Falando apenas do gameplay, tinha muitos outros jogos por aí que eram melhores e mais criativos do que ele.

Esse é exatamente o principal problema de Bioshock 2. Se você tirar o impacto da história, sobra apenas um jogo mediano. E as poucas modificações feitas no gameplay, em sua maioria, contribuíram apenas para piorá-lo. Comecemos com a parte positiva.

MUDANÇAS NO GAMEPLAY

Agora você pode usar os plasmids (o equivalente a magias) ao mesmo tempo que as armas tradicionais. Sim, exatamente como Undying fez nove anos atrás. E quando a melhor novidade do jogo é algo que foi novidade nove anos atrás e que ninguém entendeu por qual motivo não foi implantado no primeiro, vemos que algo está errado.

Também houve mudanças nos hacks (minigames que servem para abaixar o preço dos itens ou fazer as máquinas lutarem por você), que ficaram mais curtos e menos chatos; e na research (necessária para aumentar suas chances de sobreviver), que agora pode ser feita uma única vez por inimigo e acaba mais rápido do que no primeiro.

Ah, além dos big daddies, você agora deve destruir também as big sisters, praticamente versões upgradeadas de seus antecessores. Uma big sister aparece a cada três little sisters que você matar ou resgatar.

Essas foram as mudanças positivas. Vamos às negativas. Além dos motivos já explicados sobre a história, sabe por que as últimas horas do primeiro Bioshock são tão chatas? Porque você vira um big daddy e, como tal, tem que ficar protegendo as little sisters em terríveis escort missions. Todo mundo sabe que ninguém gosta de escort missions. E sabe o que os parasitas fizeram? Transformaram Bioshock 2 inteiro em uma longa sequência de escort missions.

Na tentativa de fazer o jogador se sentir mais pintudo, aqui você joga como um big daddy. Só que isso não altera a sensação de jogar em absolutamente nada. A não ser, claro, que agora toda vez que você encontrar uma little sister, precisa levá-la por aí para ficar recolhendo Adam dos presuntos enquanto você é obrigado a protegê-la.

Ok, você pode simplesmente se livrar da little sister logo, mas daí você ganha consideravelmente menos Adam e não vai conseguir fazer os upgrades necessários para sobreviver. Ah, e se você morrer durante o recolhimento, tem que começar toda essa parte da proteção de novo.

Isso me leva à outra novidade ruim. No primeiro, ao morrer, você é simplesmente teleportado para um vita-chamber, e tudo se mantém exatamente igual. Ou seja, não havia punição para a morte. Isso fez muita gente chiar, pois o jogo era fácil demais.

A solução encontrada foi mudar isso. Quando você morre, é teleportado para o vita-chamber com a mesma munição e eve (o equivalente a mana) que tinha ao morrer e com pouquinha energia, mas seus inimigos, em especial os big daddies e big sisters, recuperam quase todo o life (e a escolta tem que ser reiniciada).

Como você não recupera munição nem dinheiro ao morrer, isso deixou o jogo extremamente frustrante. Eu comecei jogando no Hard e, na fase Pauper’s Drop, fui obrigado a desistir, quando estava tentando matar um big daddy que se recuperava constantemente e fiquei completamente sem munição – e sem dinheiro para comprar mais.

Se queriam mudar o sistema do primeiro, não dá para entender porque não optaram por checkpoints tradicionais. Ora, se você morrer, os inimigos recuperam energia, mas você também volta com todo o life e toda a munição, tendo chances iguais de vencê-los na nova tentativa. Da forma que está, se você morrer muito, é obrigado a recomeçar tudo, pois não terá como reabastecer o suficiente para continuar o jogo.

Depois de jogar meu controle no gato, mudei a dificuldade para o easy, nunca mais morri e passei o resto do jogo com munição e dinheiro lotados, mas ainda não me recuperei psicologicamente por ter ficado completamente indefeso pelo mau planejamento dos criadores.

E alguém me explica por que diabos os limites de dinheiro e de munição são tão baixos? Algumas armas carregam pouco mais de 10 tiros. É muito pouco!

Ah, sim, como agora você é um big daddy, vai andar pelo próprio oceano em alguns momentos. Não faz grande diferença, mas é legal.

UM HOMEM PROGRAMA, UM CHATO VÊ DEFEITOS

Tecnicamente, Bioshock 2 está no nível do anterior. O design visual continua excelente. Andar por Rapture ainda é de tirar o fôlego, já que é possível ver como tudo foi realmente construído para ser um paraíso e, por falhas da própria humanidade, se tornou um inferno.

O lado ruim dos gráficos é a draw distance, que é bem baixa, pois é comum você ver texturas e partes do cenário aparecendo. Não lembro disso no primeiro, que joguei no Xbox 360, então acho bem provável que seja um problema da versão do PS3. Afinal, não é a primeira vez que percebi isso. Assassin’s Creed II de PS3 também sofre desse mal.

O som também é tremendão, sobretudo na mixagem. Assim como no primeiro, se você tem um bom equipamento de som surround fique por alguns segundos parado, apenas ouvindo o ambiente, e perceberá quanto capricho foi investido aí.

Uma coisa me deixou extremamente decepcionado: as legendas ainda não estão apropriadamente sincronizadas. Se você jogou o primeiro logo que saiu, deve se lembrar que os textos apareciam sem nenhuma sincronia com as falas, o que deixava o negócio simplesmente injogável. Isso foi eventualmente corrigido com um patch, mas o que eu não consigo entender é como foram errar nisso de novo.

Ok, aqui a falta de sincronia não é tão grande quanto antes, mas chega a atrapalhar e é comum deixar o jogador perdido. Poxa, quão difícil pode ser sincronizar legendas?

Mas a principal reclamação técnica que devo fazer é sobre a instalação. Antes de jogar, você precisa aguardar um processo de instalação que leva algo entre 15 e 20 minutos. Enquanto jogos como Metal Gear 4 dizem até quanto tempo o negócio vai demorar, Bioshock 2 te mostra apenas uma imagem e a palavra wait. Nada de porcentagem concluída, nada de estimativa de tempo. E, considerando quanto demora, convenhamos que isso era essencial.

Ah, a quem possa interessar, Bioshock 2 tem apenas nove fases. Poucas não? Mas não se deixe enganar, cada uma delas leva mais de três horas. Eu não consegui jogar absolutamente nenhuma em apenas uma sentada. Particularmente, preferia mais fases mais curtas, mas é errado dizer que o jogo é curto demais, pois não é! ^^

WOULD YOU KINDLY TELL ME A STORY?

Finalmente chegamos à parte que interessa para esse jogo. Você é um big daddy que foi obrigado a cometer suicídio por uma mulher misteriosa. Anos depois, você ressurge em um vita-chamber em um lugar desconhecido de Rapture e logo se vê seguindo ordens da Dra. Tenembaum, a cientista boazinha do primeiro jogo, que infelizmente some completamente depois de um tempo. Como todo big daddy, você quer apenas uma coisa: reencontrar sua little sister original.

Mas quem é você? Quem é aquela mulher e por que ela te matou? Bom, uma dessas perguntas não é spoiler, então eu posso respondê-la. Ela é Sofia Lamb, aparentemente a nova líder de Rapture, que assumiu após a morte de Andrew Ryan.

Se Ryan era completamente ateu e glorificava a criatividade, o conhecimento e a individualidade humana, Lamb é seu completo oposto. Ela conquistou o povo prometendo justamente o que faltava em Rapture: coletividade.

Você deve se lembrar que Rapture foi uma utopia onde as maiores e mais individualistas mentes foram reunidas – e foi justamente isso que causou a guerra e o declínio da cidade. Lamb se posicionou no lado social e, aos poucos, uma religião se criou ao seu redor e ela, claro, se aproveitou de seu novo status de guia espiritual. Enquanto Ryan glorificava o livre arbítrio, Sofia Lamb fazia pesquisas para conseguir se livrar dele. Para construir um indivíduo que agisse, instintivamente, em nome do povo e da coletividade.

Ao contrário de Ryan, cuja imagem já estava desgastada quando descemos a Rapture pela primeira vez, Lamb tem a cidade inteira em suas mãos – e seus soldados estão dispostos a matar por ela. E ela quer matar você.

Andrew Ryan, cujo nome é quase um anagrama de Ayn Rand, pessoa real que inspirou o personagem, carregava o primeiro jogo nas costas, com sua filosofia e seu carisma. Sofia Lamb vai quase pelo mesmo caminho, a começar pelo nome muito bem escolhido. Sofia, como o delfonauta deve saber, significa conhecimento, enquanto lamb significa cordeiro, animal comumente ligado à religião. Não consigo pensar em um nome melhor para uma cientista com status de messias, você consegue?

Ela é a principal figura do novo jogo, e embora não tenha o mesmo carisma de Andrew, também é possível se identificar com ela. Tal como seu precursor, ambos querem a mesma coisa: um mundo melhor, uma utopia. Eles só discordam do caminho para chegar nisso. Justamente por isso, alguns dos melhores momentos do jogo são os diários em que você encontra trechos de debates de Sofia contra Andrew. Esses são simplesmente geniais e mostram o cuidado filosófico envolvido na criação de cada um dos personagens. É uma pena que não haja mais desses momentos.

Outros personagens do primeiro também voltam a aparecer nesses gravadores, como o vilão Frank Fontaine. Porém, alguns dos melhores momentos são as histórias dos cidadãos comuns – e são justamente essas que são facilmente perdidas pelos mais desligados. Por exemplo, você pode encontrar várias gravações de uma esposa desesperada em busca do marido desaparecido e, várias fases depois, encontrar o marido enforcado ao lado de um diário explicando as causas do suicídio.

Uma outra sub-história é o trajeto de Mark Meltzer, cuja filhinha foi raptada na superfície e ele encontrou Rapture sozinho. Você frequentemente encontra seus diários e parece estar sempre um passo atrás dele. Até que, em determinado momento, você ouve a voz do sujeito na sala à frente. Ao chegar lá, resta apenas um diário e… bem, se quiser saber mais, jogue, mas é excelente.

O melhor de todos, no entanto, é quando você encontra o diário de um menininho que diz estar apaixonado pela garota de olhos amarelos que fica cantando músicas sobre anjos e está sempre com o pai, que é forte como um super-herói (caso você não tenha se tocado, trata-se de uma little sister). Ele diz que guardou um presente para ela numa porta trancada, que pode ser aberta com o código x-x-x-x e que vai acenar para ela da próxima vez que a vir. Você entra na porta e ali está um presente. Dentro do presente tem uma rosa.

Esse é o tipo de coisa que é facilmente ignorada por um jogador casual ou mais apressado, mas é exatamente por isso que Bioshock é um jogo tão especial e não indicado para esse tipo de pessoa. Essa rosa não serve para absolutamente nada, mas mesmo assim responde por um dos momentos mais tocantes do jogo. Na inocência de uma criança, o menino se apaixonou por uma garota sem saber que ela era quase um monstro e deixou um presente que nunca foi recolhido. Muitos anos depois, esse presente é encontrado por você e, a essa altura, tudo indica que, se esse menino não morreu na guerra civil, é um dos muitos splicers deformados que tentam te matar. Com um único diário e um item insignificante, os roteiristas de Bioshock 2 passaram não apenas a mensagem do paraíso que se torna um inferno, como ainda aproximaram o jogador do cidadão comum, com a inocência e a fofura de uma criança. Isso é um feito digno de ser aplaudido e contado pelos bardos do futuro! Um parabéns ao roteirista que teve essa ideia genial!

E esse são apenas alguns dos muitos momentos assim que presenteam os jogadores que jogam com calma e dedicam o tempo necessário para ouvir todos os diários. É isso que torna Rapture um lugar tão vivo e cheio de histórias de pessoas comuns que queriam uma única coisa: escapar de um mundo cada vez mais cruel. E, se você não pretende ouvir os diários, nem se preocupe em jogar.

A MAN PLAYS ALONE, COLETIVITY PLAYS TOGETHER

Talvez a grande novidade em Bioshock 2 seja o multiplayer. Particularmente, não tinha grandes expectativas para ele, mas sabe que é justamente a parte mais inovadora do jogo? Embora os modos sejam os tradicionais (variações de deathmatch, capture the flag e afins), essa parte se destaca dos outros pela história.

Sim, o multiplayer de Bioshock 2 tem história. Essa parte acontece durante o declínio de Rapture, mais especificamente durante a guerra entre Atlas e Andrew Ryan, muitas vezes citada no primeiro jogo. Você é um desses soldados, e é aleatoriamente atribuído a um dos times.

O mais legal é que, enquanto a maior parte dos multiplayers recompensam os jogadores que jogam bastante com upgrades, Bioshock 2 também faz isso, mas dá novos diários de áudio, que desenvolvem as histórias e motivações de cada um dos personagens com quem você pode jogar. Muito legal!

Sabe-se lá por quê, os gráficos do multiplayer são consideravelmente piores, mas como os combates são bem fast-paced, você não vai ter muito tempo para se importar com isso.

Com um pouco de sorte, inclusive, é possível pegar uma roupa de big daddy e usufruir dos benefícios que apenas munição infinita podem trazer. Isso e muito mais energia do que qualquer outro jogador. Como a energia não renova quando se é um big daddy, eventualmente alguém vai te matar, mas até lá você vai ter tirado algumas vidas do time adversário também.

A MAN BUYS, A PARASITE GOES TO ARGENTINA

No final das contas, é fácil tirar uma conclusão aqui. Se você não jogou o primeiro, nem pense em adquirir esse. Por outro lado, se você jogou e está doido por mais uma visita a Rapture, Bioshock 2 pode servir. Mas faça a compra sabendo que as coisas nunca são tão boas da segunda vez. A não ser, claro, orgias envolvendo anões besuntados em azeite de oliva.

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